Conscientização pelo choque: mulheres no Oriente Médio
- 16 de março de 2017
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- Thamires Mattos
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Mulheres sofrem, mulheres morrem no mundo em que agressões bizarras são legitimadas por um discurso sexista e opressor. Este discurso não é “privilégio” do mundo Islâmico
Ana Flávia da Silva
Lembro-me de algumas discussões há alguns meses que giravam em torno da cultura do estupro. Em certa ocasião me encontrava em uma reunião com colegas de faculdade e até professores. Falava-se em específico sobre a crença de que mulheres que são violentadas, apenas o são por conta de sua própria conduta – é a culpabilização da vítima. A princípio, todos discordavam fortemente. Sei que esta afirmação não é nenhuma surpresa. A maioria das ulheres discordam fortemente de tal argumentação e, embora poucas concordem, há aquelas que sequer param para refletir se concordam ou não. Homens também acabam reagindo da mesma forma. Espero que as entrelinhas deste texto reflitam a visão da autora sobre o tema.
Os trabalhos artísticos que embasam esta análise foram Persépolis (quadrinho documental – considerado por alguns como Jornalismo em Quadrinhos), escrito por Marjane Satrapi; e O Apedrejamento de Soraya M (filme de 2008 dirigido por Cyrus Nowrasteh).
Marjane Satrapi é mulher e iraniana. Seu país, depois de um histórico de invasões que vem desde 642 (quando os árabes invadiram a Pérsia), até 1925 (quando o nome Irã foi oficializado), sempre sofreu por conta de forças externas que se interessavam por suas riquezas. Também de forças internas, movidas por complexidades como a religião ou política. Foi neste contexto que cresceu Marjane – ou Marji. Filha de pais nada tradicionais, tinha apenas 10 anos quando o Irã viveu a chamada “Revolução islâmica”.
Marjane surge no contexto desta breve reflexão, por que seu livro remete a uma importante questão. O fato de que a “cultura do estupro” não surgiu hoje, tampouco no Brasil. Também cabe a explicação de que ao dizer “estupro” não me refiro apenas a violência sexual, mas também a violência física, psicológica e qualquer outras formas pelas quais as mulheres tem seus direitos violados. A história de Marjane e o próprio caso do Irã revela que o país do Oriente Médio soube bem como perpetrar tais violências – coisa que faz até hoje. Segundo o Índice Global de Desigualdade de Gêneros de 2015, entre os países com maior desigualdade de gêneros, o Irã se encontra em 5º lugar.
É claro, o Irã não é o foco. Marjane, em Persépolis, conta suas experiências e deixa ainda mais claro o comportamento misógino existente em sua região. O que me faz voltar, então, ao ponto central deste texto: a misoginia. Ao procurar definições para o termo, me deparei primeiramente com uma explicação que caracterizada a misoginia como “ódio ou aversão as mulheres”. Achei a definição forte demais. No entanto, ainda não havia terminado de assistir O apedrejamento de Soraya M..Depois de viver esta experiência audiovisual com o filme citado, passei alguns minutos tentando absorver as imagens apresenadas e até desabafei minha indignação e angústia com alguns colegas. Preciso confessar que o tema da violência nunca me chamou tanto a atenção. Vivi alheia a isso e apesar de me comover ao ouvir histórias de mulheres que sofreram, sempre achei que não fosse necessário tanto alarde. Depois de algumas reflexões, preciso discordar de mim mesma.
Soraya Manutchehri também é iraniana, mas sua história se passa no ano de 1986, alguns anos depois da Revolução Islâmica e durante o período de guerra entre o Irã e o Iraque – assim como a história de Marji. Seu caso foi contado ao mundo pelo jornalista franco-iraniano Freidoune Sahebjam. Mesmo depois de alguns anos sofrendo maus tratos pelo marido, Ali, Soraya se recusa a aceitar o divórcio por medo de que suas filhas acabassem passando fome e tivessem que aceitar viver como ela viveu quando jovem. Por indicação do próprio Ali, do mulá e do juiz do vilarejo, ela começa a trabalhar na casa de Hashem, um mecânico que perdeu sua esposa. Ali vê a oportunidade de se livrar de Soraya e espalha rumores de que ela está lhe traindo com Hashem. Soraya então é condenada a pena de morte por apedrejamento.
A vida de Marji não teve um fim trágico como Soraya, mas as marcas que sofreu com certeza foram tão doloridas – mesmo que não fisicamente – quanto as pedras que levaram sua conterrânea à morte. Com apenas 10 anos se deparou com a realidade da guerra, precisou lidar com a repressão e autoritarismo proveniente da revolução xiita, e aos 12 anos se separou dos pais para que pudesse ficar longe da destruição que se encontrava em seu país.
Das indignações que tive ao entrar em contato com estes dois materiais, uma delas foi notar o fato de que a culpa sempre é jogada nas mulheres, a fim de justificar atos de crueldade dos homens. Marji conta de um episódio em que sua mãe, ao sair de casa sem o véu – obrigação imposta pelo Islã no início da revolução –, é ameaçada por alguns homens que a ofendem e dizem que mulheres que não usam o véu merecem ser violentadas sexualmente. “O cabelo das mulheres contém raios que excitam os homens. Elas devem escondê-lo! Se não usar o véu é sinal de civilização, então os animais são mais civilizados do que nós”, diziam nos programas de televisão. Este caso é apenas um exemplo, existem muitos outros.
Tanto Marjane, quanto Soraya tiveram o desprazer de nascer mulheres em um país onde apenas os homens têm voz. O que possuem em comum, além do país onde nasceram é o fato de que tiveram seus direitos roubados e nada podiam fazer em relação a isso.
A reflexão inicial que me sobreveio foi: como posso reclamar de minha realidade depois de perceber como as mulheres são tratadas em outros lugares do mundo? Depois, contudo, me dei conta de que isso seria apenas mediocridade de minha parte. Me sinto impotente, e acredito que esta foi a pior sensação que tive ao terminar de ver o filme sobre Soraya. Ou ao terminar o livro de Marji – mas que felizmente também me tranquilizou. Explico. Ao pesquisar sobre Marjane vi a mulher que ela se tornou e o trabalho de conscientização que faz sobre a realidade de seu país. É um grande trabalho, mas ainda há um caminho longo a se percorrer.
Não pretento minimizar o debate sobre a situação da mulher no mundo quando afirmo estar fortemente sensibilizada por relatos como o das duas iranianas. Entendo que isto seria simplista demais. A violência contra mulher, atos misóginos (simbólicos ou não) acontecem em todos os lugares. Estejam eles no Oriente Médio ou não. Sim, somos um mundo fundado em um comportamento perpetrador da violência de gênero. Cabelos sem véu, uma mini-saia, ou qualquer outro motivo simplório é razão para a disseminação de um discurso sexista e violador. Este é um mundo de homens, o que nós (as mulheres) podemos fazer? O primeiro passo é conscientizar-se da profundidade desta violência e de sua extensão em todas as culturas. O segundo, certamente é ultrapassar a sensibilização que advém do conhecimento de realidades agressoras como as de Marjane e Soraya para comprometer-se, verdadeiramente, com uma postura de busca por igualdade nos lugares mais próximos a nós.
Os casos usados para esta reflexão fizeram com que me sentisse de mãos atadas. Mulheres sofrem, algumas chegam a morrer, por atos fundados em motivações completamente absurdas. No entanto, depois de conhecer as histórias citadas, me conscientizei de que querer mudança é mais que me indignar com os machismos do dia a dia; mais que me irritar quando ouço um assobio de um cara qualquer enquanto caminho pelo centro da cidade; mais que me condoer por alguma história de violência que ouvi. “O assunto é mais sério do que se pensa”, minha mãe diria, e concordo. O jornalista Freidoune Sahebjam decidiu contar ao mundo a história de uma mulher morta em um vilarejo completamente desconhecido do Irã. Em algum momento acreditou que isso faria alguma diferença – na minha vida fez. Escrevo, primeiramente, pois de iniciativas como a minha é que surge a possibilidade de conscientização para outros.