Como o sol trata os preconceitos e preconceituosos
- 19 de abril de 2023
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- Theillyson Lima
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Uma análise narrativa de “O Sol é Para Todos” de acordo com os pontos de vista dos personagens.
Ana Beatriz Toyota
Um filme em preto e branco. A adaptação de “O sol é para todos” (to kill a mockingbird) se passa durante a grande depressão de 1930, no pequeno vilarejo de Maycomb no sul dos Estados Unidos. Depois da guerra de secessão, o sul ainda enfrentava uma dura estrutura social preconceituosa contra a comunidade negra da época. O livro é narrado por Scout, uma garota de 6 anos que enxerga o mundo com inocência e sacia toda sua curiosidade fazendo perguntas ao pai, Atticus Finch, o advogado do condado.
Durante a história, o telespectador percebe que as crianças eram criadas pelo pai e pela governanta Calpúrnia, que era considerada parte da família Finch. A mãe das crianças morreu quando Scout ainda era pequena. Jem tinha 6 anos na época e sentia muita falta dela. Scout dizia que às vezes ouvia o irmão chorando nos cantos, e sabia que nesse momento ela devia deixar ele sozinho.
Logo no começo do livro, Scout e Jem Finch conhecem Dill, um garoto que passou as férias na casa da tia e se torna um grande amigo das crianças. Eles contam a ele as histórias do vilarejo, frisando o temível Boo Radley, um suposto “pessoa-monstro” que causa medo, mas que na realidade era um adulto que possuía uma deficiência mental. Jem chama o pai de Boo de “o homem mais malvado que já pisou na terra”, apenas por ter criado Boo. Com isso as crianças nutrem um medo da casa dos Radley, criando fábulas e fazendo especulações sobre ele, já que nunca o viram sair de casa na vida.
Durante a trama, Atticus é visto como um pai amoroso, profissional respeitado e muito bem-visto por todos. No entanto, é quando ele encara o que seria o maior desafio de sua vida, que os moradores do vilarejo o veem com desprezo e ele enfrenta até mesmo ameaças contra a sua família. O pai de Scout e Jem luta pela justiça contra uma falsa acusação de estupro direcionada à Tom Robinson, um morador de Maycomb que é declarado culpado apenas por sua cor. A visão da pequena narradora, traz a sensibilidade de uma criança, frente a um quadro tão injusto.
Jean Louise Finch (Scout)
Tudo começou quando Dill desafiou meu irmão Jem a tocar na parede da casa do terrível Boo Radley. Sim, acho que esse foi o começo. Só sei que só de ouvir o nome de Boo era como se estivessem falando do bicho-papão, nem mesmo os seus vizinhos já o haviam visto. Eu não sabia como era sua aparência, Jem havia me dito que ele “apresentava uma profunda cicatriz ao longo da face; e tinha uns dentes amarelos e podres; os olhos esbugalhados, e ainda por cima babava-se a maior parte do tempo.” Isso já era o suficiente para matar a minha curiosidade.
Depois desse verão as coisas começaram a ficar mais tensas ainda, eu não sentia nada diretamente, mas papai passava dias atordoado e eu tinha a impressão que de noite ele não dormia. Pelo que eu entendi ele estava defendendo Tom Robinson, um amigo negro de Calpúrnia. Ouvi os dois dizendo na cozinha que o caso era sobre ele ter estuprado uma menina branca de Maycomb e era bem sério, eu não sabia bem o significado dos termos.
O júri da cidade o condenou antes mesmo de entrar em audiência, e meu pai o defendeu até o juiz dizer chega, e eu ainda não entendo porque não é o juiz quem tomou a decisão final. Eu e Jem fomos escondidos à audiência e quando chegamos era impossível entrar de tanta gente que tinha. Ainda bem que tentando entrar no tribunal encontramos com o reverendo da igreja de Calpúrnia e ele nos concedeu lugar entre os seus amigos na parte de cima do prédio do tribunal. Eu conseguia ver meu pai ao lado de Tom Robinson, e senti pena dele, pois ele chorava muito.
Papai começou a falar e senti que ele estava confiante. Tom Robinson contou sua parte da história, disse que a Srta. Mayella o chamava sempre para consertar algo e no dia 21 de agosto ela foi para cima dele e ele saiu correndo dela. Ele contou isso quase que aos prantos e pareceu que essa informação chocou toda a audiência.
Jem Finch
Meu pai pegou ele! Pegou o Sr. Robert Ewell em cheio! Durante a audiência do tribunal de Maycomb eu e a Scout decidimos entrar escondido do Atticus. Ele disse que não queria que víssemos o processo do caso porque era um assunto complicado e deixava as pessoas estressadas. Eu com certeza não ia perder o maior evento do vilarejo em anos! Todos da cidade foram lá para assistir à audiência e eu pude ver de cima, com os familiares e amigos de Tom Robinson.
A primeira coisa que Atticus fez foi perguntar ao xerife Tate quais os ferimentos que ele viu ao chegar na casa dos Ewell, ele disse que encontrou a Srta. Mayella com arranhões nos braços e pescoço, e em seu olho havia um grande hematoma roxo. Meu pai logo perguntou qual era o olho, e o xerife balbuciou, disse primeiro que era o direito e depois falou que com certeza era o esquerdo. Depois deu detalhes do que poderia ter acontecido, dizendo que Tom Robinson havia enforcado a Srta. Mayella e ao fazer isso, com a outra mão a golpeou no olho esquerdo, deixando as marcas citadas.
Logo após isso, chamaram o Sr. Robert Ewell, pai da Srta. Mayella, para depor, já que ele havia sido a primeira pessoa a pegar o crime no “flagra”. Ele chegou meio cambaleante, (o Sr. Ewel é conhecido por beber muito e ser ignorante na maioria das vezes) ele xingou Tom Robinson por vezes e falou que a resolução do caso já estava clara, sua família havia sido desonrada. Atticus como sempre manteve a calma e em poucas perguntas já deixou a audiência boquiaberta. Meu pai perguntou ao Sr. Bob se ele sabia escrever, e ele disse que sim, imediatamente deu a ele um lápis e um papel para poder escrever o próprio nome.
ELE PEGOU O LÁPIS COM A MÃO ESQUERDA! COM A MÃO ESQUERDA! O Sr. Robert Ewell era canhoto! Nesse mesmo momento começou um burburinho e ele começou a gritar, “o que que tem? por que que eu tive que fazer isso?”, o juiz disse calmamente que ele havia provado ao júri que era canhoto, apenas. O que ficava implícito que ele quem tinha dado o soco no olho esquerdo de Mayella! Sua própria filha! De acordo com o júri, essa revelação não significava nada, então o Atticus precisaria provar que Tom Robinson não usou simplesmente sua mão esquerda para fazer isso.
Meu pai então chamou o réu à frente do juiz. De onde ele estava, dava uns 10 metros de distância, ele pegou um copo de vidro e disse ao Tom para pegar quando ele jogasse. Tom agarrou o copo com a mão direita e pôs em cima da mesa. Atticus novamente pegou o copo e disse para ele pegar dessa vez com a mão esquerda. Tom disse que não poderia fazer isso, e meu pai perguntou, “por que não?”
Tom Robinson tinha sofrido um acidente com 12 anos e não tinha o MOVIMENTO DO BRAÇO ESQUERDO! ELE NÃO TINHA O MOVIMENTO DO BRAÇO ESQUERDO! A partir desse momento meu pai bombardeou o júri, “como o réu enforcou e deu um soco na vítima se só o braço direito dele é útil?”, “como o réu atingiu o olho esquerdo da vítima se para isso ser real ele precisaria ser canhoto e nem o movimento do braço esquerdo ele possui?”. Foi nesse momento que tive certeza que meu pai havia pegado eles!
Tom Robinson
A minha lembrança mais marcante com certeza foi com 12 anos. Sim, naquela época as pessoas trabalhavam cedo, ainda mais gente como eu. Levantei naquela manhã, como todos os dias, pude ver o sol nascer e ter certeza que aquele horário seria o mais fresco do dia, mesmo assim eu já estava suando.
Fui à fazenda do Sr. Dolphus Raymond, colher e tirar caroço de algodão como todos os dias. Não sei se você já colheu algodão, mas as mãos racham e os espinhos às vezes te cortam e naquele dia eu estava cansado… Fui ao galpão e de uma vez só liguei a máquina do Sr. Raymond que retirava caroço de algodão, e quando fui colocar tudo na máquina o meu braço se prendeu, e eu quase morri. O médico me disse que eu perderia os movimentos do braço porque a máquina havia feito todos os músculos se desprenderem dos meus ossos, e realmente perdi.
Mesmo com apenas um braço funcionando, eu ainda tinha força o bastante para ser útil. Todos os dias eu ia e voltava do trabalho na fazenda do Sr. Link Deas, onde eu colhia algodão e cuidava do jardim dele. Esse era o sustento da minha família. O único caminho que eu podia fazer até os campos do Sr. Deas era passando pela casa dos Ewell. Eles tinham muitos filhos, acredito que 7 ou 8 no total.
Uma das filhas de Bob Ewell era Mayella Ewell, ela sempre pedia minha ajuda quando eu passava por sua casa. Às vezes ela precisava de alguém para cortar lenha, para recolher gravetos ou pegar água do poço. Eu sempre ajudava e nunca pedia moedas em troca porque sentia pena da situação dos Ewell, eles eram pobres e tinham muitas crianças em casa e a Srta. Mayella parecia muito solitária, por isso sempre tratei a família com educação.
No dia 21 de agosto eu estava voltando da fazenda do Sr. Link Deas e como de costume passei pela casa dos Ewell, nisso Mayella me parou e disse que havia uma porta dentro da casa que precisava de conserto. Achei estranho estar tudo tão silencioso já que com 7 crianças a casa nunca é triste, não é mesmo? Perguntei a senhorita onde estavam os pequenos e ela disse que haviam ido tomar sorvete. Entrei na casa e fui olhar a porta quebrada, aparentemente parecia normal.
Empurrei para frente e para trás e elas nem rangiam. Foi então que ela fechou a porta na minha cara, a Srta. Mayella fechou a porta do quarto. Tomei um grande susto e disse para ela que precisava ir para casa, porque eu não podia ajudá-la com mais nada dentro daquela casa. Ela disse que eu podia sim, e me mandou pegar uma caixa em cima do armário. Eu subi na cadeira e quando me estiquei senti ela agarrando as minhas pernas e caí para trás, deixando a cadeira para fora do lugar… mas eu juro que foi a única coisa que mexi naquele quarto, eu juro!
Eu virei para ir embora e ela pulou em cima de mim. Me abraçando pela cintura, ela disse que, “nunca tinha beijado um homem e que dava no mesmo se beijasse um preto”, e que “o que o pai dela fazia com ela não contava”. Eu tentei sair, mas ela estava escorada na porta, então eu tive… eu tive… que empurrar a srta. Mayella… eu não queria machucá-la, mas o Sr. Ewell apareceu na janela e disse que ia matar ela e começou a gritar e eu só sei que corri e não vi o que aconteceu depois. Eu corri com todas as minhas forças, eu fugi dali.
Atticus Finch
É difícil dizer algo sobre o julgamento. Sabia que seria uma tarefa árdua, porque não era um caso de opinião apartidária. As pessoas que foram à audiência já tinham seus pré conceitos muito bem estabelecidos e o Sr. Thomas Robinson sabia disso. Eu como advogado, tinha como tarefa defender meu cliente e provar sua inocência a todo custo, não apenas porque esse era seu direito, mas porque eu realmente acreditei nele, desde a primeira vez que ouvi os relatos da situação.
Meus filhos, Jem de 10 anos e Jean Louise de apenas 6, eram pequenos demais para encararem o fardo que carregaram por consequência da minha decisão. E isso me pesava os ombros, todos os dias. Scout (apelido carinhoso que dei à ela) sofria com xingamentos na escola, e até se envolveu em brigas por conta disso. Os pais do condado repassavam suas dores aos pequenos, e no ambiente escolar as opiniões dos adultos influenciavam a violência dentro da escola. Eu pedi para Scout não brigar, pois não era isso que ela aprendia em casa. Desde que a mãe deles morreu, eu decidi que criaria nossos filhos para serem pessoas de caráter excepcional, pois era isso que ela merecia.
Logo após a audiência das testemunhas o júri declarou Tom como culpado, isso o desesperou muito, e eu imaginava que seria assim. Na realidade eu mantive o pensamento positivo, porque durante a audiência eu pude deixar claro que haviam declarações injustas contra Tom e, no fim, não era o júri que declarava a sentença final. Então ainda existia esperança.
Ao chegar em casa eu estava exausto. Fisicamente e mentalmente, era como se aquela audiência tivesse me esmagado. Foi então que o carro do xerife Tate encostou na porta de minha casa e eu já nem imaginava o que poderia ser. O Sr. Thomas Robinson em uma tentativa desesperadora e sem esperança de buscar a própria liberdade fugiu da guarda e ao atirarem para ferir acabaram matando Tom. Ele estava morto.
Eu não consegui conter as lágrimas, mas fiz isso dentro do carro a caminho da casa da família Robinson. Chegando lá a primeira coisa que me perguntaram era sobre qual seria a data da próxima audiência. Tirei meu chapéu e disse que não haveria próxima. Tom havia morrido. Sua esposa se desfaleceu e eu lembrei do momento exato de quando soube que o meu amor não voltaria para casa, e eu senti medo de criar nossos filhos sozinho.
No fim todo o preconceito de Maycomb acabou na morte de um homem inocente. Mas essas histórias impactantes demoram para se dispersar do interior. Depois de uma festa de outono do vilarejo, tempos após a morte de Tom, meus filhos voltavam para casa pelo caminho que sempre faziam. Era escuro e alguém os seguia. Apenas me lembro de ouvir gritos e imediatamente Arthur Radley (Boo) entrou em minha casa com Jem no colo, repleto de arranhões, hematomas e um braço claramente quebrado.
Me faltava fôlego, pedi para Calpúrnia cuidar de Jem e saí à procura de Scout. Ela estava bem por um milagre, o Sr. Arthur Radley os havia salvado. Liguei para o médico e para o xerife, e ao chegarem Tate declarou que na floresta Robert Ewell estava com uma faca cravada no peito, a faca que ele usaria para matar minhas crianças. Arthur Radley o havia matado e o primeiro questionamento dirigido à mim foi sobre como o acusariam de assassinato.
Arthur era um homem que nasceu com complicações e isso era refletido no seu comportamento. Foi afastado da sociedade desde criança e o vilarejo o condenava pela sua aparente limitação. Seu instinto de proteção para com os meus filhos refletiu a profunda humanidade dentro dele. Condená-lo seria como defender o desejo desumano de Robert Ewell de tirar a vida de crianças puras. No final, o pensamento que faltava frente ao preconceito depositado sobre Tom e Arthur era de que as pessoas são boas, mas primeiro precisamos conhecê-las.
Sobre o filme/livro
O filme foi produzido em 1962 e seus diálogos são praticamente idênticos aos do livro. O produto recebeu 3 Oscar’s em 1963, de melhor roteiro adaptado, melhor direção de arte e melhor protagonista. O filme trata Atticus Finch como personagem principal e o personagem foi inspirado no pai da escritora do livro, Harper Lee. Assim como Scout ela também possuía um pai que era advogado no estado do Alabama, que assim como Atticus, representou negros em julgamentos.
A trama destaca a importância de se conhecer sem preconceitos, por isso a presente análise traz uma visão fictícia dos personagens, descritos com base nas apresentações do livro e filme. Durante todo o livro, é de se observar que as pessoas da época se tratavam com os pronomes de Sr. e Sra. uns com os outros, no entanto, o leitor percebe que pessoas negras como Tom Robinson e Calpúrnia nunca foram citados com esse prefixo de tratamento. A cor da pele denominava nesse período se você era digno de respeito ou não.
Tanto o livro como o filme sempre voltam ao seu título, ao destacar que o sol é para todos. Em sua última parte, a trama volta a um personagem muito explorado no início pelas crianças, o temível Boo Radley. Esse personagem salva Jem e Scout do ataque de Robert Ewell que, em tentativa de vingança contra Atticus por defender Tom Robinson, tenta matar seus dois filhos. Boo salva as crianças e ao fazer isso acaba matando o Sr. Ewell.
O encerramento dos dois produtos (livro e filme) se dá entre uma conversa entre Atticus e Scout, onde o pai explica à filha o porquê não condenaria Boo Radley por assassinato: “seria como matar um rouxinol”. Dentro do contexto, o título do livro em inglês faz referência ao rouxinol, pássaro, bem mencionado na história. O rouxinol representa a inocência, e matá-lo seria como acabar com a própria pureza, condenar Boo seria como cometer um ato de injustiça. Depois dos desdobramentos finais fica explícito que os preconceitos criavam uma barreira entre as pessoas. A última fala pertence a Atticus Finch, que olha para Scout e diz, “a maioria das pessoas são boas quando finalmente as conhecemos.”