Chamado à recuperação: como a mídia pode contribuir para o resgate do fundo do poço
- 6 de abril de 2022
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Muito se especula sobre o papel da mídia em breakdowns de famosos, mas será que ela não pode ser benéfica a essas ditas estrelas?
Melissa Maciel
Parece um padrão que estrelas mirins, nascidas no berço da fama, se afundem em uma vida de escândalos e crise de identidade no início da idade adulta. Parece inabalável, também, a colocação da mídia como a grande vilã e destruidora da imagem de muitos famosos. Mas será que ela realmente deve ser vista assim?
Fama precoce e as estrelas cadentes
Artistas como Britney Spears, Lindsay Lohan, Justin Bieber, Amanda Bynes e o brasileiro Walter Casagrande, são exemplos de pessoas que desde muito cedo foram introduzidas no mundo da fama e colocados como figuras públicas. Amanda Bynes, por exemplo, teve seu primeiro papel televisivo com 7 anos; já Casagrande iniciou sua carreira no futebol com 17. Mas qual é o preço dessa vida?
Em 2012, quando ganhou o prêmio de artista do ano do American Music Awards, um jovem Justin Bieber declarou em seu discurso que “é difícil crescer com tudo acontecendo ao mesmo tempo, com todos me observando.” Depois, ele passou por um período turbulento: más escolhas abalaram sua vida na esfera profissional e na pessoal. Sete anos depois, quando passava pela fase de recuperação, Bieber desabafou no Instagram que, durante sua ascensão, era ovacionado por milhões que diziam o quanto o amavam e quão incrível ele era. Ele explica que “você escuta tanto essas coisas quando garoto que acaba acreditando. Todos faziam tudo por mim, então eu nem mesmo aprendi os fundamentos da responsabilidade”..
Em entrevista à Veja, a pesquisadora e especialista em desenvolvimento humano do laboratório de Psicologia da Unicamp Maria Belintane Fermiano esclareceu que jovens de fama precoce “não convivem com frustrações, tudo é satisfeito do jeito que querem, e por isso se sentem poderosos e inatingíveis. Muitas estrelas mirins depois têm vidas desregradas.”
A fama é algo grandioso, de atribuições praticamente incompreensíveis para alguém no início da vida. A pressão à qual são submetidos e a extrema exposição que precisam suportar por terem escolhido a vida de pessoas públicas são fatores que levam muitos jovens famosos a fases obscuras em suas vidas. Então, até que ponto a mídia é a responsável por esses breakdowns?
Mútua afetação
Segundo artigo da doutora em Comunicação Social Paula Guimarães Simões, intitulado “A mídia e a construção das celebridades: uma abordagem praxiológica”, a imprensa pode atuar como configuradora de experiências, ou seja, os produtos midiáticos podem afetar positiva ou negativamente os indivíduos e estes reagem a esta ação.
No artigo, a doutora explica que este é um processo recíproco: “a vivência e a prática dos indivíduos são configuradores dos produtos midiáticos e, ao mesmo tempo, os significados produzidos pela mídia configuram as experiências dos atores sociais.”
Portanto, como toda boa análise apresenta as duas versões da história, não podemos desconsiderar os casos em que a imprensa usa de seu poder configurador de experiências para incentivar celebridades perdidas em suas escolhas, a se reestruturarem.
Um meio para a libertação
O ano de 2007 foi fatídico para a carreira de Britney Spears. Com divórcio, drogas, baladas e perda da guarda dos filhos, a artista se envolveu em inúmeros escândalos. No ano seguinte, ela foi colocada sob a tutela do pai, o que ficou conhecido como programa de conservatorship (em português: tutela), do qual tentou se desvencilhar por anos, mas foi reprimida e silenciada.
Será que a imprensa ficou quieta quanto a essa situação? Com certeza não. Em 2021, o The New York Times conseguiu acesso a documentos confidenciais da corte que julgava o caso de Britney e a partir deles revelou depoimentos da cantora quanto a como era sua vida nesse período.
Durante os 13 anos em que esteve sob tutela, ela não pôde pronunciar-se sobre como realmente se sentia. Com as últimas revelações, porém, o público passou a ter conhecimento de que a artista expressou séria oposição à circunstância por não ter controle ou poder de escolha sobre a própria vida.
Além disso, essa trajetória da estrela é explicada no documentário “Framing Britney Spears”, produzido com base nas reportagens da redação do The New York Times enquanto a tutela estava em vigor. Este produto buscou expor, também, um lado de Britney que havia sido pouco celebrado até então, sua personalidade independente, obstinada e resiliente.
Não podemos deixar de mencionar a visibilidade que a imprensa, através de portais como os da Vogue, deu ao movimento #FreeBritney, sustentado por seus fãs. Eles pediam incessantemente a libertação e independência da cantora.
Quando, em junho de 2021, foi finalmente sancionado o fim do regime de tutela, Britney Spears fez uma declaração pública e sobre a propagação do movimento #FreeBritney ressaltou: “minha voz foi silenciada e ameaçada por tanto tempo. Eu não podia dizer nada, e, graças a vocês e ao conhecimento do que estava acontecendo e noticiar ao público por tanto tempo, vocês deram conscientização a todos e eu honestamente acho que vocês salvaram a minha vida”.
Tudo começa com a mídia?
Amanda Bynes também foi um ícone juvenil que se deixou levar pelo mundo das drogas. No entanto, em nenhum momento ela responsabilizou a mídia por suas más escolhas, pelo contrário. Durante seu processo de recuperação, após ter decidido se afastar das telonas, ela veio a público para esclarecer tudo que realmente estava acontecendo com sua saúde mental.
Em 2018, a revista Paper publicou uma entrevista em que a atriz explicou detalhadamente como se deu o processo até o estopim de seu breakdown. Ela expôs como abusou das drogas desde muito nova e ao longo do caminho perdeu seu propósito de vida. Ao mencionar uma época em que estava participando da gravação de um longa sob influência de uma quantidade significativa de substâncias ilícitas, ela declarou: “Eu cometi muitos erros mas não fui demitida. No entanto, eu deixei o filme e isso foi definitivamente, completamente não profissional da minha parte.”
Ela confessou ainda dedicar muito tempo a postagens irresponsáveis no Twitter, e declarou sua aposentadoria das telas nesta plataforma. “Isso foi bem imaturo e eu vejo isso agora. Eu era jovem e estúpida”, afirmou Amanda. Aliás, em 2014, quando um áudio da atriz afirmando querer matar seus pais causou polêmica, o TMZ publicou um material expondo as explicações da moça sobre o ocorrido e como ela estava apenas brincando.
A emissora ABC News também deu visibilidade para o processo de recuperação da atriz, expondo como ela estava envolvida e empolgada com sua graduação em Arte de Desenvolvimento de Produtos e Merchandise pelo Instituto de Moda, Design e Merchandise de Los Angeles.
Incentivo a recuperação
Walter Casagrande, astro do futebol nos anos 80, foi uma celebridade brasileira que enfrentou um período no fundo do poço devido ao envolvimento com drogas. Anos depois de sua pior fase, a imprensa esportiva inunda a mídia com entrevistas de “Casão”, como o chamam, sobre como ele se desvencilhou desse período escuro com a ajuda da família.
Disseminam largamente a perspectiva de que Casagrande encarou sua sobrevivência como uma missão e hoje busca inspirar pessoas com problemas como os dele. Em suas publicações, empresas como ESPN e Revista Trip dão palco para a divulgação das palestras do ex-astro para jogadores de base do Corinthians, Santos e São Paulo, por exemplo, além da promoção dos livros escritos pelo ex-jogador, como Casagrande e Seus Demônios, de 2013 e Travessia, de 2020. Tudo isso sem contar o episódio que o ajudou a perceber que precisava de tratamento: em 2011, Casagrande participou do “Domingão do Faustão” e ficou impactado com o depoimento de seu filho caçula.
Quando convidado para o “Encontro”, Casão afirmou à Fátima Bernardes que, com o depoimento dos filhos, “a cobrança começou a vir ao vivo. Aquilo me chocou, eu não percebia que estava daquele jeito. Eu pensava: ‘Parou de usar droga, tá resolvido’, mas não, as pessoas têm mágoa, as pessoas sofreram, ficaram com raiva do meu comportamento. Começou a ficar chocante para mim.”
Mídia vilã ou mocinha?
O papel da imprensa é noticiar, é falar daquilo que se faz de interesse público. Diante de tudo o que analisamos pode-se observar que a grande mídia estava cumprindo com sua incumbência, noticiando o que acontecia na vida de figuras públicas.
No caso de Britney Spears, o empenho midiático em divulgar o que realmente estava acontecendo com o regime de tutela, e, em dar palco aos movimentos que clamavam por sua independência, foi crucial para que a diva pop recuperasse o poder de fala sobre a própria vida.
Com Amanda Bynes, a escolha da mídia em dar espaço para que a atriz explicasse detalhadamente seu caminho de dificuldades, ao invés de sensacionalizar especulações, foi importante para que os fãs tivessem uma visão clara e verdadeira do que realmente aconteceu. Além disso, dar visibilidade e ênfase para as tentativas de reerguimento da artista também servem como incentivo para sua recuperação.
Para Casagrande, então, pode-se dizer que a imprensa proporcionou um balde de água fria. Como ele mesmo comentou, a entrevista documentada do filho foi essencial para que compreendesse como as pessoas ao redor dele se sentiam com relação ao seu vício e como era urgente que ele priorizasse o tratamento. Enquanto isso, a divulgação de seus livros, palestras e de seu propósito de ajudar outros que enfrentam as mesmas dificuldades servem como a concessão de uma segunda chance, da oportunidade de fazer diferente.
Assim, por mais que a imprensa possa causar desconforto para muitas celebridades em alguns momentos, não podemos ignorar sua atuação como um chamado para que os famosos saiam do fundo do poço.