Cancelados: de mocinhos a vilões
- 29 de março de 2021
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A demanda por aceitação geralmente faz o protagonista ultrapassar os limites do bom senso, mas não para por aí
Franciele Borges
Desde que a cultura do cancelamento foi popularizada como forma de punição para quem tem uma conduta imprópria, influenciadores digitais, empresas, sites e artistas são atacados, criticados e excluídos do mundo on-line por provocarem sensações inconvenientes que ofendem minorias e a história. O hino do Rio Grande do Sul, por exemplo, sofreu ataques recentes após uma bancada negra de deputados da Câmara de Porto Alegre se opor à uma estrofe da letra, que diz “povo que não tem virtude acaba por ser escravo.” O hino é cantado há 183 anos e uma minoria, que nasceu quase dois séculos depois, sentiu-se vitimizada e protestou pela retirada da frase.
Houve ecos do mesmo incômodo com o hino de Santa Catarina, que carrega trechos sobre escravidão.A internet facilitou o conhecimento do assunto com a hashtag #ChegaDeHinoRacista. Daí se percebe que nas redes sociais há um júri delimitando a exposição de algo ou alguém, e situações externas são trazidas para o on-line para que alcance mais audiência e cause polêmica.
O cancelador
O sujeito cancelador tem a tendência de opinar sem dar chance de ser rebatido. É enfadonho, para quem discorda das tendências de cancelamento, dialogar com quem tem em sua mente o senso de que está em suas mãos fazer da internet uma terra justa e livre para quem quer que seja. Geralmente, o cancelador é aquele que milita contra ideias e atitudes que ele mesmo não teria coragem de fazer – ou porque legisla em causa própria.
Nem todo que milita tem como filosofia o que defende no seu perfil. Desviar-se das leis dos “canceladores” é um erro fatal. Ainda existe alguém por trás de um celular incentivando, criando e sendo protagonista de uma nova forma de pensar e viver. E esta pessoa, embora real, não é totalmente autêntica. Parece com o que a jornalista Vera Guimarães expressou em seu Twitter: “Quem é você para cancelar alguém? […] Você não é Deus, juiz, nem dono da verdade.”
O cancelado
A sociedade, em geral, ilude-se com a ideia do perfeccionismo que é exposto nas redes sociais. Felicidade, riqueza, simpatia, saúde e corpo perfeito. Exposição de uma vida invejável, e como consequência a imitação. Eles, os influenciadores, vendem sua imagem diariamente. E milhares compram. Mas isso nunca foi garantia de um bom caráter, consciência limpa e atitudes refinadas. Os tropeços nas suas falácias expõem um comportamento inadequado e infeliz. Geralmente, o comportamento de quem comete um crime ou ofende alguém na internet, é de vítima. Fazem vídeos, stories e textos pedindo desculpas e fazendo justificativas. Mas, quase sempre, é tarde demais. O papel de mocinho é trocado pelo de vilão.
O cantor MC Gui protagonizou uma cena estúpida em um passeio à Orlando ao filmar e debochar da aparência de uma menininha de apenas sete anos. Imediatamente, os canceladores reuniram-se com ataques de rejeição ao cantor e ele rebateu, dizendo que “a internet ‘tá’ cheia de gente chata.” Logo, ele emitiu um pedido de desculpas em vídeo para tentar refazer sua caricatura de mocinho. Depois da retratação, conseguiu ganhar quase 100 mil seguidores em seu perfil no Instagram.Esse foi um dos inúmeros exemplos de pessoas famosas que cometeram (e ainda cometerão) deslizes, mas logo são reintegradas à normalidade da vida virtual. São personagens, ora bonzinhos, ora malévolos, que não saem de cena mesmo que a peça teatral esteja ruim.
Outros absorvem negativamente o cancelamento. A blogueira Alline Araújo, ao ser rejeitada pelo noivo um dia antes da cerimônia de casamento, decidiu “se casar com ela mesma”. Infeliz ideia de compartilhar isso com seus seguidores. Ela estava desapontada pelo momento que vivia e frustrada por ser mais uma abandonada no altar. A imagem que passou era de vítima, mas ela creu que a sua história geraria curtidas e mais seguidores.
O triste fim de Alline foi despencar do nono andar do prédio em que morava para esquecer de vez as críticas que recebia. Preocupou-se excessivamente com a opinião e julgamento alheios. Afinal, como a veriam depois do abandono? Uns se afetam para chamar a atenção, enquanto outros apenas fogem dela. A demanda de aceitação gera um preço. Custa a vida – ou encenações.
O cancelado pode ser esquecido das cabeçadas que deu e para retornarem aos seus postos mudam o nome, reinventam-se. Ou seja, aparecem com uma nova identidade na internet, como se nada houvesse acontecido. Talvez, exista algum benefício em ser cancelado. Em alguns casos, a audiência cresce motivada pelo interesse em saber o porquê da rejeição. Seu trabalho, no lugar de ser esquecido, é promovido pelo jogo de gato e rato que as redes sociais oportunizam. E isso é só um pedacinho da cultura do cancelamento.