Boate Kiss: legalidade ou somente vingança?
- 23 de agosto de 2022
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Depois de nove anos, o caso volta a mostrar mais uma vez como as deficiências da mídia podem contribuir de forma negativa nas acusações, julgamentos e condenações.
Laura Rezzuto
Todo fim de semana, sem nenhuma exceção, a Boate Kiss atraía centenas de pessoas de várias regiões do Brasil. Até o fatídico incêndio, que deixou uma pilha de 232 corpos queimados e irreconhecíveis. Além de o episódio entrar para a história, também tornou a madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 conhecida como “beijo da morte”.
Naquele sábado (26), às 23h00, uma festa da Boate Kiss chamada “Agromerados”, em parceria com a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), acontecia na Cidade Universitária de Santa Maria-RS e reunia alunos de Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Pedagogia e outros cursos.
Por volta das 02h30 de domingo, a casa já estava cheia a ponto de os jovens não conseguirem cruzar o ambiente. E às 03h00, a banda Gurizada Fandangueira começou a se apresentar no palco, foi quando um dos integrantes decidiu disparar um sinalizador em direção ao teto. E o que veio depois é quase impossível de imaginar, simplesmente o maior incêndio dos últimos 60 anos. 242 pessoas perderam a vida e 636 ficaram feridas.
Segundo o Jornal Latinoamericano, NFPA, que publicou uma reportagem exclusiva na época, após a ação do integrante da banda, a música para de tocar e um segurança tenta usar um extintor de incêndio. Porém, o extintor não funciona, e o público, sem saber da gravidade do que estava por vir, zomba. Depois disso, devido a quantidade de pessoas, apenas as que estavam mais à frente entendem que é preciso sair da boate o mais rápido possível, e as outras, um pouco mais atrás, acabam por notar o perigo tarde demais.
Ainda de acordo com a NFPA, ali, naquele mesmo lugar, havia apenas uma saída, no caso, a entrada principal, retida por seguranças que não possuíam autorização para liberá-la, e quando decidiram desobstruir, já havia um engarrafamento. Em questão de dois a três minutos, o local já estava em chamas, não havia energia elétrica, placas luminosas, luzes de emergência ou sinalização, o que resultou em pisoteios e poucos minutos depois, em uma imensa tragédia.
Quando o Corpo de Bombeiros chega ao local, alguns procuram o incêndio, mas descobrem que o fogo já havia se apagado; outros buscam algum sobrevivente, mas os poucos que restaram, já se encontravam fora da boate. Tudo isso, não por causa do tempo que os bombeiros levaram para chegar até lá, mas por conta de como o incêndio se desenvolveu rápido e também consumiu tudo o que pôde.
A acusação
Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, donos da Boate Kiss; Luciano Bonilha Leão, produtor da banda, que usou o sinalizador; e Marcelo de Jesus dos Santos, o vocalista da banda, foram detidos em 28 de janeiro de 2013 e acusados de homicídio simples com dolo eventual, referente às 242 vítimas fatais, e tentativa de homicídio, quanto às 636 vítimas feridas, porém, em nada deu o julgamento, devido tantas versões que surgiram na época.
A Folha de São Paulo conta que já em dezembro de 2021, nove anos após o desastre, o Júri retomou o julgamento e ouviu dois sobreviventes, 16 testemunhas, um informante e os quatro réus. Foram dez dias de depoimentos emocionantes para quem precisou lembrar do dia da tragédia.
Após a condenação de 18 a 22 anos e sem os embasamentos corretos, muitos profissionais do ramo jurídico, em especial do ramo criminal, discordaram das acusações feitas contra os quatro suspeitos, dizendo que não se podia usar o termo “dolo eventual”(significa que mesmo não querendo prejudicar ninguém, o indivíduo arrisca, sem nem ao menos se importar com as consequências), mas sim “culpa consciente”(quando a pessoa, mesmo não querendo praticar o crime, acaba praticando-o por descuido).
De acordo com um artigo desenvolvido pelo JusBrasil, a sociedade acreditava que os donos da casa noturna sabiam do risco de incêndio. Porém, não achavam que aconteceria de fato, já que em todos aqueles anos realizando festas no mesmo nível da última, nada parecido havia ocorrido. Do mesmo jeito, a banda tinha noção de que havia um risco de provocar o incêndio com os fogos que costumavam usar, mas, por utilizarem os objetos com frequência, não acreditavam que realmente uma fatalidade viesse a acontecer. Infelizmente estavam errados.
Porém, devido a alta repercussão do caso, profissionais continuaram a afirmar que o caso não havia sido julgado da maneira correta, e após as análises dos julgamentos, a primeira Câmara Criminal decidiu por anular o julgamento e a sentença dada aos quatro réus, que hoje, se encontram soltos desde o dia 3 de agosto.
Pelas lentes da mídia brasileira
Nosso objetivo aqui não é discutir sobre conceitos filosóficos a respeito do que deveria ser certo ou não, nem mesmo deliberar quem concorda com a forma como o caso foi levado à júri ou qual teria sido a melhor pena a ser aplicada aos réus. Até porque, de uma forma ou outra, existiram erros dentro dessas partes, quer tenham sido intencionais ou não.
O que pouco se fala, é que na época, a mídia queria a todo custo manter a “tragédia da Boate Kiss” sempre em rede nacional, por isso, durante o julgamento, alguns atos impensados de jornais trouxeram inúmeras especulações e opiniões sem razões factuais para o caso. A cobertura exagerada da mídia brasileira apresentou repetições desnecessárias, trazendo assim, várias versões ao público e uma pressão à justiça quanto à condenação dos réus.
“Quando estamos acampados no Ministério Público, ninguém da Imprensa vai. O Jornal Nacional só fez sensacionalismo com os pais em frente aos caixões dos filhos, pois quando estávamos agarrados ao caixão dos nossos filhos berrando, todos os jornalistas vieram como urubus”, relatou Carina Correa, mãe de uma das vítimas, ao jornal local da cidade.
Olhando por todos os lados, sem sombra de dúvidas, a condenação dos envolvidos deveria acontecer de fato. Porém, as leis e os métodos estipulados deveriam ter sido considerados, já que estão aqui por motivos específicos, como esse: para tornarem um julgamento justo. Deveria ter existido um processo, mas não apenas para atender a pressão estabelecida pela mídia na época. O que de grande forma, afetou negativamente o julgamento.
Será que é certo julgar erroneamente quatro réus, de quatro famílias, para tentar amenizar um pouco a dor daqueles que perderam familiares e amigos na tragédia da Boate Kiss ou somente para satisfazer a pressão da mídia?