Armar ou não armar?
- 18 de abril de 2019
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- Thamires Mattos
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Entenda o debate sobre o desarmamento
Amanda Ferelli
Em 20 de abril de 1999 – há 20 anos –, dois jovens armados entraram na Columbine High School, no estado do Colorado. Os criminosos assassinaram 13 alunos e deixaram 24 feridos. Esta tragédia influenciou e serviu de inspiração para outros atentados em escolas nos Estados Unidos e outros países, como, por exemplo, no Brasil. Em março de 2019, dois jovens, também armados, entraram na Escola Estadual Professor Raul Brasil, no município de Suzano em São Paulo. Os dois infratores mataram oito pessoas e feriram onze. Tragédias como essas levantam o debate sobre o controle de armas.
Na potência norte americana, esse debate está, por enquanto, decidido pela Constituição do País com a Segunda Emenda, que garante o direito do cidadão americano de possuir e portar armas. Mesmo assim, pessoas contrárias à Emenda protestam contra a medida. No Brasil, a história é um pouco diferente. Com o Estatuto do Desarmamento de 2003, os cidadãos brasileiros têm o acesso à armas e munições dificultado. Por aqui, algumas pessoas lutam, também, contra a lei.
Nos últimos anos, com a admissão dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, a discussão sobre o armamento da população esteve ainda mais em alta nos dois países. Os presidentes possuem discursos semelhantes, e reforçaram que é necessário armar os cidadãos durante suas campanhas. Agora, como chefes de estado, procuram garantir esse direito para a população. Os debates e protestos estão longe de ter um fim.
Efetiva Necessidade
Duas semanas após a cerimônia de posse, o presidente Jair Bolsonaro apresentou um decreto que fragilizava alguns pontos do Estatuto do Desarmamento ao flexibilizar os requisitos para a posse de arma. “Segundo o Estatuto do Desarmamento, que é Lei Federal (nº 10.826/03), possuir uma arma de fogo é tê-la no interior da sua residência; enquanto portar é ter o direito de estar com ela na rua, por exemplo. É o direito de ir e vir portando a sua arma”, exemplifica o advogado criminal Carlos Maggiolo.
O decreto apresentado pelo presidente flexibiliza o quesito da efetiva necessidade. O termo refere-se a justificativa do cidadão para obter o direito da posse. “A “efetiva necessidade” de se possuir uma arma de fogo deixou de ser um critério subjetivo a ser apreciado por um delegado federal e passou a ser um critério objetivo em que quase todos os Estados da Federação caracterizam a efetiva necessidade”, explica o criminalista.
Mal me quer
O desígnio de Bolsonaro é considerado por muitos como uma medida de segurança pública. De acordo com a determinação do presidente, é necessário flexibilizar os requisitos para a posse de armas para cidadãos brasileiros. Como mencionado, este decreto fragiliza alguns pontos do Estatuto do Desarmamento. Para o Deputado Federal e Delegado Antônio Furtado (PSL-RJ), o Estatuto serviu para deixar mais rigoroso o porte de arma no país. “Sei que existem pontos que devem ser alterados, afinal de contas, o Estatuto não conseguiu coibir a venda ilegal de armas e munições. Ainda vemos inúmeros casos de armas de fogo sendo portadas por bandidos, então esse é o principal ponto que a Lei deve combater para trazer paz às famílias brasileiras”, acredita o parlamentar.
Já para Maggiolo, a flexibilização também significa a implementação de uma política pública de combate à criminalidade. “Aliás, me atrevo a dizer que é uma das mais eficazes políticas públicas, porque igualam as forças, revelando-se uma política pública natural, quase que orgânica e de eficácia prática no cotidiano social”, assume. Os defensores da flexibilização da posse de arma acreditam que a medida pode vir a colaborar para a baixa do número de homicídios e crimes no país.
“Armar a população seria garantir o direito de escolha individual. Caso as pessoas queiram ter a arma em casa é uma opção delas e hoje o que temos é um estatuto que dificulta isso, mas não inviabiliza a arma na mão do crime organizado, o que leva terror e pânico a quem cumpre a Lei”, conclui Furtado. De acordo com o Instituto Sou da Paz, 40% das armas apreendidas tinham um registro legal, sugerindo que foram usadas pelos próprios donos, roubadas ou desviadas.
Bem me quer
O advogado Bruno Santiago, especialista em crimes digitais, argumenta que a proposta do presidente Jair Bolsonaro facilita o crescimento de lojas de armas online ilegais, permitindo assim o acesso mais fácil às armas de fogo pelos cidadãos. Segundo Santiago, o decreto tem impacto direto na segurança pública. “Basta ver as pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que chegaram ao resultado, em 2013, que o Estatuto do Desarmamento impediu a morte de cerca de 121 mil indivíduos no país, entre os anos de 2004 e 2012. Além do índice de homicídio maior em 12% se não existisse o Estatuto do Desarmamento”, informa.
Cresce o número de parlamentares e cidadãos da oposição acreditam que a flexibilização e a comercialização das armas podem aumentar o número de crimes seguidos de mortes no Brasil. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) apresentou o Projeto de Decreto Legislativo nº 11 que suspende o decreto proposto pelo presidente. De acordo com a Deputada Federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), “na avaliação do partido, o decreto, ao facilitar amplamente a posse, o registro e a comercialização dessas armas, tenderá a agravar, ainda mais, o quadro de violência no país”. Além disso, o PSOL destaca estudos que apontam que o aumento da circulação de armas de fogo produz um aumento no número de mortes. “Ampliar a quantidade de armas de fogo em circulação produz aumento dos índices de homicídios intrafamiliares, feminicídios, suicídios, a possibilidade de acidentes envolvendo crianças e adolescentes, os homicídios por motivos fúteis e por conflitos interpessoais variados, além de facilitar o acesso de criminosos a armas de fogo”, reforça Talíria.
“É por você”
Uma das argumentações utilizadas pelos apoiadores do armamento civil é a defesa e a segurança da mulher. Segundo eles, as mulheres são as maiores vítimas do Estatuto do Desarmamento. Para os defensores da medida, armar os homens de família é uma necessidade, pois os mesmos precisam proteger suas mulheres e filhos. Formada majoritariamente por homens, a bancada da bala – políticos que defendem o armamento civil –, argumentam também a favor da flexibilização para que mulheres se defendam. Entretanto, em dezembro de 2018, o Datafolha apontou que 71% das mulheres são contra o decreto do presidente Jair Bolsonaro que pretende flexibilizar a posse de armas. Então, por quem mesmo a bancada da bala está argumentando?
Apoiadores do armamento civil conquistam apoiadores ao divulgar altos índices de casos de estupros de mulheres e crianças, assim como casos de feminicídios. O que lhes falta, no entanto, é compreender a importância dos números que identificam os agressores. Segundo uma pesquisa de 2016 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 30% dos casos de estupro contra crianças foram praticados por familiares próximos como pais, irmãos e padrastos. Para vítimas adultas, 46,1% foram cometidos por pessoas conhecidas.
Em 2017, o número de mulheres vítimas de homicídios cresceu 6,1% em relação a 2016. Além disso, foram registrados 221.238 casos de violência doméstica. São, aproximadamente, 606 casos por dia. Para Petrone, a flexibilização da posse de armas “ pode aumentar, ainda mais, os índices de assassinatos e feminicídios”.
Na mesma pesquisa do Fórum, foi apontado o aumento no número de homicídios de negros no Brasil. Em 10 anos, a taxa de homicídios cresceu 23,1%. A Deputada Federal Áurea Carolina (PSOL-MG) destaca que “as principais vítimas desse modelo de segurança pública repressivo, armamentista, de superencarceramento, são a população negra e pobre”. O número de negros assassinados no Brasil em 2016 equivale a 2,5 vezes o número de não negros. A taxa de homicídio da população negra foi de 40,2% enquanto a de não negros foi de 16%. “Notadamente, jovens negros são as maiores vítimas de homicídios no Brasil. Mudar essa lógica é também proteger vidas e, sobretudo, aqueles grupos mais vulnerabilizados que sofrem violações de direitos de toda ordem”, aponta a deputada.
“É só puxar o gatilho?”
Para manusear uma arma é necessário obter muita instrução. As armas têm travas de segurança por um motivo: sem o manuseio correto podem levar a uma tragédia. O soldado da Polícia Militar Emerson Kogeo concorda que a flexibilização da posse de arma tem como objetivo proteger o cidadão, mas afirma que é necessária uma capacitação. “É preciso entender que não é somente garantir a posse da arma. A situação é um pouco mais complexa. Tem que ter preparo – essa é a palavra-chave. O cidadão precisa receber muitas instruções de como usar e como realizar a manutenção da arma antes de garantir a posse”, aponta.
Conforme uma pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 71,1% dos 62.517 mil homicídios em 2016 foram praticados com arma de fogo. Para Talíria Petrone, o número de assassinatos pode aumentar devido à falta de preparo, “uma vez que o acesso [às armas] não está, necessariamente, condicionado a um preparo para essas pessoas”, realça. O decreto proposto por Bolsonaro até então não apresenta nenhum argumento para a questão do preparo da população.
No Brasil, ainda não existe um estudo com evidências comprovando que a flexibilização de armas seja uma política de segurança pública eficaz, e que a população esteja preparada para esse decreto. Para muitos, o melhor recurso ainda seria uma melhora no formato atual de segurança pública. “O que nós precisamos, de fato, é de uma política de segurança cidadã baseada em evidências. Na mediação de conflitos, na construção de alternativas penais, de justiça restaurativa, para evitar o encarceramento em massa, reduzir os índices de homicídios e prevenir a violência, finalmente”, conclui Áurea.