Ao vento
- 11 de novembro de 2015
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- Thamires Mattos
- Posted in Sessão Cultural
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É interessante analisar as realizações de Margareth Thatcher imortalizadas pelo ícone deixado para trás. Por outro lado, é triste constatar como alguns líderes dependem mais de uma imagem para a sobrevivência pública, e não de ações, pensamentos e ideias capazes de efetivar esta.
Kelson Brecht
“Tudo é ficção”, afirmou o escritor irlandês Keith Ridgway ao escrever um artigo para o The New Yorker, em 2012. Para ele não há outra maneira de capturar a vida a não ser através de uma visão acidentalmente fictícia da mesma. Afinal, não interessa o quanto se tenta ser fiel ao recontar algo cotidiano como o seu dia no trabalho ou na faculdade para um amigo. Ainda assim, ao passar as informações necessárias, uma história nasce, e seja na sua mente ou na mente do interlocutor, personagens, cenários e tramas são criados.
“Suas conversas são ficção. Seus amigos e ente queridos — eles são personagens que você criou. E suas discussões com eles são como reuniões com um editor — por favor, eles lhe suplicam, você os suplica, reescreva-me. Você tem uma percepção de como as coisas são, e você as impõe na sua memória, e desse jeito você pensa, do mesmo jeito que eu penso, estar vivendo algo descritível. Quando é claro, o que nós de fato vivemos, o que nós de fato experienciamos — com nossos sensos e nossos nervos — é um vasto, absurdo, lindo, ridículo caos.”
Mas as descrições impostas em nossas memórias são traiçoeiras. E não apenas porque não conseguimos retratar fielmente o supermercado visitado semana passada, mas porque mesmo se conseguirmos o tempo dará conta de modificá-lo para nós. Isto, se não apagá-lo por completo.
Porém, idealizar uma memória é essencial. Criar ícones com os quais nos identificamos transforma as narrativas e as enriquece. A simples imagem criada por nós – ou para nós – sobre alguém é o suficiente para carregarmos um indivíduo em nossa mente para o resto da vida, ou até mesmo para o resto da existência de uma memória coletiva. Isto elevado à um ponto onde até mesmo quando o dono da figura idealizada não estiver mais ciente de sua importância, ou não for mais capaz de reconhecer a própria imagem, o ícone permanecerá vivo. O personagem ainda fará parte de uma narrativa, de uma história ampla e contínua.
Figuras em âmbito político exemplificam a criação de uma imagem para uma melhor identificação ou aceitação do público. Como não lembrar a figura da Dilma enquanto ministra-chefe da Casa Civil e não compará-la a transformação na posse da presidência? Ou quando foi ministra de Minas e Energia? Ou então indo mais longe, até os tempos quando era militante marxista com aqueles óculos e…. Talvez, aí, seja exagerar um pouco.
De qualquer maneira, os paralelos comparativos da criação de uma imagem feminina pública não poderiam deixar de se estender para a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, a primeira e única a mulher a ocupar o cargo. Apelidada “Dama de Ferro” pelos soviéticos, Thatcher permaneceu onze anos no cargo, e através de uma política posteriormente conhecida como tatcherismo revolucionou o cenário econômico britânico.
Retratando trechos importantes da vida de Thatcher, surge em 2011 o filme A Dama de Ferro . Escrito por Abi Morgan, dirigido por Phyllida Lloyd e estrelado por Meryl Streep o filme tenta capturar a essência da figura de Thatcher através de flashbacks ocasionados pela senilidade da ex-primeira-ministra. A agora fragilizada “dama de ferro” tenta a todo custo recriar uma narrativa linear a respeito da imagem construída sobre si através dela e de terceiros. Porém, a história é fragmentada e em diversos momentos Thatcher é incapaz de distinguir realidade de ficção. Principalmente quando dentro da realidade o falecido marido reaparece a todo momento como um personagem essencial.
Mesmo tropeçando ao dosar a vida pessoal e política da figura, o filme retrata os momentos-chave onde Margaret Thatcher se adequou a uma imagem idealizada para ela nas modificações físicas como: vestimentas, penteado e maquiagem, até mudanças comportamentais como na postura e na voz.
Mas a história criada por Thatcher a respeito de si mesma oscila até o ponto em que ao ver sua imagem em uma televisão ela balbucia “não consigo mais me reconhecer”. A narrativa se fragmentou em sua mente, e apenas os relatos e imagens criadas pela mídia e entes queridos permanecem vivos. A verdadeira Margaret Thatcher já foi desconstruída e reconstruída através da imagem ativada pelo outro.
Desta maneira, é interessante analisar as realizações feitas por Thatcher sendo imortalizadas e perpetuadas pelo ícone deixado para trás. Independente dos erros e acertos, o marco foi deixado. E é triste constatar como alguns líderes dependem mais de uma imagem para a sobrevivência pública, e não de ações, pensamentos e ideias capazes de efetivar esta. Como para alguns é mais importante falar sobre estoques de vento a construir uma imagem narrativa capaz de sobreviver a este.
No filme, Margaret Thatcher deixa a cozinha durante os créditos finais fazendo a coisa que havia jurado ao marido, Denis Thatcher, jamais fazer: lavar uma xícara de chá, adotando uma postura “submissa de dona de casa”. Mas a imagem de Margaret Thatcher responsável por lavar a xícara já não era a da Dama de Ferro. Ela já havia sobrevivido ao tempo e ao vento.