A desilusão de Gilmore
- 8 de março de 2023
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Análises
- 0
A vida de Rory e a perda de amor pelos seus sonhos.
Hellen de Freitas
Lançada nos meados dos anos 2000, Gilmore Girls é aquela série reconfortante que traz situações cotidianas de maneira leve e engraçada. A trama principal da obra gira em torno do dia a dia de Rory e Lorelai Gilmore, moradoras da pequena Stars Hollow em uma relação de mãe e filha, que mais se parecem com melhores amigas.
Lorelai foi mãe na adolescência, consequentemente a sua relação com a filha se mostrou de uma forma não convencional, ao querer ter essa ligação de amizade além da materna. Rory é aquela filha tranquila, inteligente e determinada, com o sonho de ser jornalista desde sempre, ela vai atrás de seus objetivos na renomada Yale College.
Entretanto, assim como várias retratações na vertente audiovisual, paradigmas relacionados a profissões são uma realidade e a renomada série Gilmore Girls não escapa dessa ideologia de que jornalistas e o mundo que os engloba podem ser enquadrados simplesmente dentro de uma caixa.
“Magoar pessoas é o que fazemos”
A série sempre pontuou o desejo de ascensão da pequena Gilmore em relação ao mundo jornalístico. As primeiras temporadas mostram a fascinação de Rory pelo jornal de sua cidade e sua participação ativa no jornal da escola em seu período no Ensino Médio. No entanto, é a partir da quarta temporada que vemos o seu amadurecimento como universitária do curso de Jornalismo. Nessa nova fase de sua vida, Doyle McMaster é introduzido ao show, sendo o editor chefe do jornal de Yale.
Doyle coincidentemente é colocado como aquele clássico jornalista que não valida emoções e só se importa com o produto final de suas matérias. Segundo ele, dados não são importantes e as opiniões são o que realmente fazem o seu texto ter relevância. Apesar de não estar completamente errado, a sua abordagem em toda série sempre é a mesma: frieza e indiferença para com todos.
Rory é caloura, e é normal que as suas experiências não se comparem com a do editor chefe, entretanto, a construção da relação dos dois é totalmente antiética. McMaster faz revisões preguiçosas e a todo momento a série passa aquela sensação de que uma redação funciona a base de um leve desleixo e impessoalidade
Destaca-se, que o papel de um editor dentro de uma redação é guiar o processo criativo como um mentor em todo o andamento da produção de um texto. Ao contrário do que é passado no universo de Gilmore Girls, o editor na realidade, dá ênfase aos dados e a verificação dos fatos impostos nas matérias e reportagens.
Assim como dito antes, Rory Gilmore é uma novata em sua faculdade e apesar de ter uma escrita e inteligência de dar inveja a qualquer um que já tenha assistido a série, ela sempre se destacou por ser uma pessoa ética, andar na linha, obediente e até mesmo careta para alguns.
Essa personalidade é construída ao longo de toda a trama, apesar dela ter um lado mais ácido e crítico sempre se mostrou alguém que se importa, até um pouco demais, com o que os outros irão pensar. Mas tudo muda drasticamente ao se deparar com o nosso “querido” editor e mentor, Doyle McMaster.
Ao ingressar no jornal de uma das maiores da Ivy League, Rory se vê animada em explorar ainda mais o seu lado jornalístico. Contudo, seu sonho tem um empecilho, pois após escrever dois textos, suas matérias não foram publicadas. Ao indagar o motivo, tem como resposta a falta de emoção, segundo Doyle, dados demais e opinião de menos.
Vale ressaltar que em certo aspecto o seu editor não estava errado, afinal, um texto não se compõe apenas por estatísticas e pesquisa. Contudo, a forma como o editor fala passa a ideia de que a empatia não existe se você escolheu trilhar o caminho do jornalismo.
Rory se encontra obrigada a mudar sua abordagem, o que ocasiona em uma fonte insatisfeita e inimigos que foram feitos devido a sua crítica dura em relação a uma apresentação de balé. Por ser uma pessoa que nunca teve muito atrito em sua vida, a “menina dos olhos de Stars Hollow” percebe o estrago que foi feito e mais uma vez escolhe a mentoria de Doyle.
O mais engraçado de tudo é que você espera que ele diga que realmente ela ultrapassou um limite, que vidas sofreram graves consequências por causa de suas palavras. No entanto, mais uma vez ele reforça o estigma de que jornalistas só ligam para o próprio umbigo. Rory pede para que o texto seja refeito e seu editor apenas responde:“Magoar pessoas é o que fazemos, se não aguenta, deveria sair do jornal”.
Após uma conversa esclarecedora para Gilmore, na qual ela foi agraciada com elogios por ter destruído o sonho de uma bailarina, o episódio acaba com a lição de moral de que um texto bem escrito é um texto em que apenas a sua opinião é válida, independentemente de quem seja machucado. O episódio ainda finaliza com a frase de uma Rory amadurecida e mudada, muito diferente da Rory retratada no começo da série, que enfatiza: “Às vezes temos que fazer um inimigo”.
Fracasso Gilmore
A jornada jornalística de Rory fica em aberto no final da sétima e última temporada da série, contudo em 2016, nove anos após o que seria o encerramento da família Gilmore, foi lançado um revival com quatro episódios de pura nostalgia.
No entanto, indo contra o que os fãs esperavam, a prodígio do mundo jornalístico não teve a ascensão dentro do imaginado. Pelo contrário, Rory aparece perdida e desiludida com todo o universo de jornais e reportagens.
Guiado novamente por um estereótipo, a pequena Lorelai é retratada como uma jornalista sem relações amorosas profundas ou mesmo uma casa fixa para se morar. Fica claro para quem assiste que ela está em uma fase na qual se enxerga de maneira frustrada, pois apesar de ter escrito um artigo para o The New York Times, um dos jornais mais bem conceituados no mercado, não trabalhava de carteira assinada e se via perdida.
Afinal, de onde vem essa ideia de que os profissionais desse meio se perdem ao longo dos anos e se encontram infelizes com o caminho que foi trilhado? Ou, em que ponto foi imposto que, jornalistas não podem ter uma ótima carreira e ser feliz em seu lado interpessoal?
Em uma confusão em que seus pertences literalmente estão em caixas espalhadas por moradias de conhecidos, ela traz uma narrativa pesada de que uma vida como jornalista está fadada a se tornar insuficiente. A Gilmore ainda enfatiza, “é isso que eu sou agora, aquela pessoa que você conhecia na adolescência, que era esperta e centrada, ela foi mastigada e cuspida por essa coisa chamada vida e você nunca mais vai vê-la de novo”.
Essa visão um tanto quanto desconsolada, me leva a crer que faltou um choque de realidade para a Rory compreender que o mundo não funciona baseado em nossas fantasiosas crenças, por mais altruístas que elas sejam. O universo e cotidiano de um repórter, editor ou qualquer outro cargo jornalístico, não é fácil e demanda muita força de vontade e sacrifícios, talvez uma renúncia que ela não estava disposta a fazer. Por medo de admitir que falhou, utilizou o caminho mais fácil e culpou todo um campo antes de olhar para si.
A infelicidade e descontentamento com a sua carreira profissional estão ligados intrinsecamente a sua falta de habilidade em balancear o trabalho e uma vida pessoal saudável. Acredito que suas próprias ambições foram as precursoras de um destino dito como “fracassado” pela mesma.