A culpa é minha?
- 27 de outubro de 2015
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Um relato pessoal de quem enfrentou a xenofobia na Europa
Guilherme Cavalcante
Dia 30 de julho de 2014. Por volta de 15h. Inevitavelmente, acabei guardando este momento de minha história até hoje. Era meu terceiro dia (o segundo ‘completo’) como intercambista em Dublin, capital da Irlanda. Chegara no dia 28 com muitas expectativas e sonhos, me sentindo um ‘ET’ a cada olhada profunda ao meu redor. Realmente, eu estava lá. Realmente, estava, pela primeira vez, vivendo fora de meu País. Foram meses fantásticos ali. Imaginava que permaneceria em Dublin por, ao menos, um ano, entretanto novas possibilidades me fizeram ficar somente oito meses e uma semana na ‘Ilha Esmeralda’, como é conhecido o país europeu. Sem dúvida, os melhores oito meses e uma semana de toda a minha vida. São muitas lembranças marcantes, experiências emocionantes e amizades edificantes. Devido ao curto espaço que possuo e ao tema desta edição, me atenho a uma dessas memórias inesquecíveis. Infelizmente, de maneira negativa.
Naquele dia, passeava pela região central da cidade, quando avistei um amigo do Brasil, que ainda não havia encontrado lá. Papo vai, papo vem, fui convidado por ele para auxiliar em uma mudança que ocorria cerca de 1 km dali. De quebra, conheceria um grupo de adventistas brasileiros. Nem sequer hesitei. Ao chegar, percebi que o grupo era muito maior do que imaginara. Nunca pensei que 48h depois de chegar, faria amizade com mais de quinze pessoas de uma só vez. Não poderia haver dia melhor. Como citei anteriormente, a razão primária da visita era ajudar na mudança de quatro brasileiras. A distância entre a antiga casa e o novo apartamento era de somente 50m. Rapidamente carregamos as malas e os moveis e concluímos o trabalho. Já na nova casa, após bastante papo e comida, nos despedimos das meninas e partimos. Saí dali com mais quatro pessoas, uma delas morava na minha casa. Iríamos caminhando a pé de volta para o Centro, onde tomaria o ônibus para a região suburbana, onde habitava. Entretanto, a jornada alegre e animada mal começara e fora subitamente interrompida com os gritos de uma adolescente, cuja aparência emitia a ideia de ter 13 anos, um pouco mais a frente.
– A culpa é sua! A culpa é sua! – exclamava a plenos pulmões, como se não estivesse em uma via movimentada de uma capital.
O barulho ensurdecedor diminuiu nossos passos e desviou nossa atenção, inevitavelmente, a ela. Apesar de caminharmos juntos, estava um passo atrás do grupo, conversando com meu housemate (como chamam colega de casa na Irlanda). Como estava um pouco atrás, não imaginei que aqueles gritos fossem para mim. Quando, de repente, a voz se voltou exatamente em minha direção.
– É você mesmo, seu negro filho da p***. A culpa é sua! Vai embora daqui! – gritou novamente a garota.
Apesar de não interromper minha caminhada, gelei ao escutar o xingamento. Meu irmão mais velho, que dividia o quarto comigo em Dublin, me alertara sobre a existência de um grupo de jovens baderneiros apelidados de ‘knackers’ (ou nanás, como os brasileiros carinhosamente chamavam). Comuns na região central de Dublin, esse grupo é conhecido por sua intolerância étnica, falta de educação e ataques ao patrimônio público. Formado, majoritariamente, por jovens de 12 a 18 anos, o bando é odiado por todos, sejam irlandeses ou estrangeiros. Entre suas ações mais comuns estão os famosos ataques com ovos e/ou batatas contra não europeus que transitem por perto de onde estão e os roubos de bicicletas nas áreas turísticas.
Apesar do alerta e de várias histórias que escutei sobre eles, não imaginei que confrontaria a primeira já no meu segundo dia no país. Um misto de medo, tristeza e raiva me invadiu naquele instante. O sangue quente subiu e estava perto de tomar uma atitude impensada. Apesar disso, preferi baixar a cabeça e seguir meu caminho. Os ensinos bíblicos de São Paulo pernetraram minha mente naquele momento: “Não se deixe vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem”. Tal não foi a reação de meu colega. Virando-se para trás, confrontou a garota e pediu que ela repetisse o que havia acabado de dizer. Continuando a gritar “vai embora daqui” de maneira insana, a garota atirou uma batata nos ombros dele e, acuada, caminhou em sentido contrário ao nosso, ainda proferindo palavrões e mais palavrões contra negros e estrangeiros.
Passado o susto, com o coração batendo fortemente, tentei digerir o que acabara de ocorrer. Fora alvo de xingamentos em uma via pública, em alta voz, numa área próxima a região central.
“Liga não Gui, você ainda vai ver muito disso aqui. Já estamos acostumados”, consolou-me uma amiga, enquanto caminhávamos rumo ao nosso destino.
Após um breve ataque de raiva de meu housemate, retomamos o ritmo alegre e animado de nossa conversa. Depois daquilo, graças a Deus, nunca tive qualquer problema maior com os tais ‘nanás’. Tirando um gesto racista, certa vez, posso dizer que nunca mais vi qualquer expressão xenófoba por parte deles. A experiência não afetou minha visão sobre a Irlanda e os irlandeses. São um dos povos mais amáveis que conheci; extremamente carinhosos e cuidadosos. Recebi inúmeras demonstrações de amor por parte deles. Aprendi a amar aquele país e, até hoje, sinto muita falta. Porém aquela fatídica cena no dia 30 de julho de 2014 não se apagaria de minha mente tão facilmente. Afinal, por que a culpa era minha? Por que uma menina tão nova protagonizaria uma cena tão lamentável em público?
De vez em quando, somos confrontados através de veículos de comunicação com inúmeras demonstrações de ódio a determinados grupos da sociedade. Apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, fui criado e passei a maior parte da minha vida na Região Nordeste, de onde vem, inevitavelmente, o meu sotaque. Testemunhei, com extrema infelicidade, diversos comentários preconceituosos, especialmente em redes sociais, desqualificando o povo nordestino e colocando sobre eles a culpa de todas as mazelas do País. E esse é apenas um exemplo do que ocorre com os mais diversos povos deste planeta.
Adoramos jogar a culpa em alguém. Essa é, na verdade, uma característica que parece perpassar todos nós. Naqueles corações mais perturbados e tendenciosamente sociopatas, tal ação ganha contornos doentios. Como a daquela garota. Um dia depois do ocorrido, resolvi pesquisar as causas da ‘culpa’ que eu possuía. De acordo com ela e seu grupo, estou roubando seus empregos, suas mulheres, suas reservas financeiras e, aparentemente, a felicidade deles.
Em um país onde a taxa de desemprego continua a cair significamente, após atingir mais de 20% nos negros anos pós-crise financeira de 2008, o primeiro argumento não parece fazer nenhum sentido, afinal mais e mais postos de trabalho estão surgindo na Irlanda. Além do mais, como eu, um estrangeiro, com visto de estudante, com domínio apenas intermediário do inglês e com pouca experiência profissional poderia vencê-los no mercado? Quanto ao segundo argumento, cheguei na Ilha solteiro, mesmo status com o qual saí de lá. Se teve uma coisa que fiz, foi comprar coisas em Dublin, então não posso ser a causa de tanto ‘furto’ financeiro como alegam.
Quanto ao último argumento, tão pessoal e subjetivo, creio ter fortes réplicas. Trabalhei nas ruas de Dublin e redondezas por seis meses. Meus serviços sempre incluíram relacionamento com os transeuntes. “Good morning, what’s the craic?” (Bom dia, o que tá pegando contigo?) foi a frase que mais falei em meu período na Ilha. Creio ter colocado mais sorrisos nos rostos dos dubliners do que retirado. Após refletir sobre tudo isso, uma hora depois, abri um sorriso e não deixei de pensar: “Mas por que perdi meu tempo nisso?”. Tem coisas que não precisam de resposta. São Pedro já dera a resposta: “se mantenha com boa consciência, para que aqueles que pronunciam calúnias contra você fiquem envergonhados”. A tristeza de tais argumentos é auto evidente. Sei que a culpa não é minha. Mas já sei de quem pode ser.