LIVRO: A insurreição do “dotô”
- 8 de junho de 2015
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- Thamires Mattos
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Thamires Mattos
Já adianto ao leitor que só gosta de assistir finais felizes que Sob Pressão conta uma história que provoca indignação e tristeza constante. O cenário? Deplorável. Quem tem nojo de sangue pode enfrentar um grande obstáculo ao folhear o livro, o qual narra cenas de cirurgias – em sua maioria, torácicas – e mortes. Tudo isso traçou o caminho de insurreição de Márcio Maranhão, médico que trabalhou por 15 anos em instituições públicas do Rio de Janeiro tentando ressuscitar pessoas sem o mínimo apoio governamental. É interessante notar que o livro contém várias ‘notas’ – explicações de termos técnicos da medicina, siglas, dados sobre políticas públicas de saúde de outros países e do Brasil.
A narrativa é feita por Márcio Maranhão em primeira pessoa, porém foi escrita pela jornalista Karla Monteiro que trabalhou em publicações como Veja, O Globo e Folha de S. Paulo. Como freelancer, resolveu acompanhar a jornada de trabalho do médico por dois anos, por isso conheceu de perto a realidade do sistema público de saúde do Brasil e a vida de Márcio.
Maranhão não nasceu em berço de ouro, mas também não era “pobre de marre, marré, marré”. Criado na Gávea, zona sul carioca, cursou medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ao se graduar em 1994, so- nhava em exercer a profissão em hospitais públicos. O jovem de classe média queria retribuir a educação gratuita que recebera, proporcionando à população uma oportunidade de ter contato com uma “medicina plena, social”. Não almejava grandes salários, apenas queria o suficiente para se sentir valorizado. A gratidão por quem lhe deu oportunidades era maior do que o esgotamento físico e mental de uma sala de cirurgia.
O tempo foi passando e o trabalho foi se acumulando. Como bom prove- dor familiar, o médico não permanecia em apenas um emprego. Eram dois ou três ao mesmo tempo. Em um desses foi plantonista do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), época em que mais injetou adrenalina em suas veias. Entrar na ambulância e chegar a lugares inóspitos para tratar de gente à beira da morte era fascinante para o médico. Cenários de guerra eram os mais comuns em seus turnos. Favelas cariocas com idosos e jovens balea- dos, sangrando sem parar. Gente simples que, quando conseguia falar recla- mava de dor para o “dotô”. O tratamento começava na ambulância. Alguns morriam rápido, outros mais fortes conseguiam chegar ao hospital. Sem leitos e equipamentos suficientes, a superlotação era e é rotina do sistema público. O SUS apenas terminava o serviço iniciado por uma bala de revólver.
Aos poucos, a ilusão de um sistema de saúde “salvador” foi se atrofiando no coração de Maranhão. No entanto, o trabalho era viciante, uma espécie de entorpecente. Mais tarde, ao perceber que não tinha mais tempo para sua fa- mília, o agente de saúde decidiu pedir demissão do SAMU e, depois, dos outros hospitais da rede pública. Não aguentava mais ver gente sem eira nem beira, jogada pelos corredores das instalações hospitalares. Percebeu que poderia ter salvado mais pessoas se tivesse os equipamentos corretos e necessários. Apontou defeitos na burocracia do sistema, pois já não suportava o sofrimento provocado pelas políticas públicas de saúde.