Eu consigo voltar sozinho
- 3 de abril de 2024
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- Theillyson Lima
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Conheça a história de Léo, um adolescente com deficiência visual que, assim como outros jovens da sua idade, busca independência e uma vida “normal” como a de seus amigos não deficientes.
Yasmim Larissa
A adolescência é marcada por diversas transformações na vida de qualquer pessoa em busca da independência. De acordo com a ONU, essa é uma fase “na qual as transformações acontecem rapidamente e exigem uma agilidade de adaptação intensa consigo mesmo, com o próximo e com o que se entende do mundo”.
É comum que nesse momento os adolescentes queiram se libertar das “amarras” da infância e buscar a liberdade. Hollywood aproveita essa temática para criar histórias atemporais e entreter seu público ao explorar primeiros amores, pressões sociais, conflitos com os pais, amadurecimento e tudo pelo o que essa fase é marcada.
Se você já assistiu ao menos 2 filmes que retratam a vida adolescente, quero que você pense em quantos dos personagens apresentados possuíam alguma deficiência e que a sua limitação não era o que norteava sua história. Difícil, né? Afinal, até mesmo alguns filmes que possuem personagens com deficiências, utilizam isso como enredo principal para a criação de seu roteiro.
No filme nacional “Hoje eu quero voltar sozinho”, somos apresentados a uma trama na qual um personagem cego enfrenta os desafios da adolescência como a busca por independência e amor, sem que o enredo gire em torno de sua deficiência visual, mas sim na fase de descoberta de si mesmo e da vida.
Sua abordagem simples e sensível consegue prender o telespectador até o final, mas nos faz questionar até que ponto o que é apresentado não passa de uma ilusão utópica. Fazendo jus aos inúmeros prêmios conquistados, como o Teddy Awards e o FIPRESCI Awards em Berlim, melhor filme no San Francisco International Lesbian & Gay Film Festival, além de receber uma indicação ao Oscar na categoria de “melhor filme estrangeiro”, mas que infelizmente não chegou a entrar na disputa.
Onde tudo começa
O filme é uma adaptação cinematográfica do curta-metragem brasileiro “Eu não quero voltar sozinho”, produzido por Daniel Ribeiro. Sua história gira em torno de Leonardo (Guilherme Lobo), um estudante deficiente visual do ensino médio que, em busca de sua independência, precisa lidar com uma mãe superprotetora. Quando Gabriel (Fabio Audi) chega em sua cidade, sua vida muda, complicações com sua melhor amiga Giovana (Tess Amorim) e novos sentimentos começam a surgir.
Na sala de aula, seus colegas de classe não queriam sentar muito próximo de Léo devido ao som que sua máquina de datilografia fazia; inclusive, faziam piadas com tal situação. As chacotas se fizeram presentes no momento em que Gabriel se sentou atrás de nosso personagem principal, mas os ruídos não demonstraram ser um problema para o novato, que sem perceber (ou talvez apenas esqueceu) a deficiência visual de seu colega, pediu uma borracha a ele, nascendo daí uma amizade entre os dois.
A cegueira como só mais uma característica
Apesar das dificuldades encontradas por Leonardo, ele é retratado como um personagem completo, multifacetado, cuja deficiência visual e outros aspectos de minoria são apenas uma parte de sua identidade. Com muita sutileza, logo nos minutos iniciais a produção mostra seu dia a dia bastante comum e revela o motivo de seu título, visto que sua melhor amiga o leva todos os dias, após a aula, até sua casa e abre o portão para que entre de forma segura em casa.
Essa maneira de abordar sua condição é com certeza o que mais surpreende. É como se estivéssemos assistindo mais uma comédia romântica na sessão da tarde. Ainda assim, o diretor não deixa de explorar essa característica com outros recursos disponíveis.
Sons que marcam
Utilizando sons característicos como o teclar da máquina datilográfica e o bater da bengala, é como se o produtor quisesse nos colocar na pele de Leonardo. O que vemos não é o foco no momento, mas sim o que ouvimos, nos auxiliando a identificar o que está acontecendo na cena. Não bastando, ao longo da exibição, escutamos as conversas de Léo com outros personagens, mas não os vemos de imediato. A câmera foca nas “reações” que o personagem interpretado por Lobo está tendo enquanto dialoga com alguém, trazendo uma experiência imersiva para o telespectador, permitindo que a nossa imaginação flua.
As estratégias com o som não se limitam à experiência com o telespectador, o filme explora a democratização do acesso a portadores de deficiências visuais quando o jovem Leonardo acompanha Gabriel ao cinema, que precisa explicar tudo o que acontece no filme que estavam assistindo.
Tal situação seria contrariada diante sua condição, sendo que, no ano em que o filme foi lançado, esse não recebia nenhum tratamento especial. Foi apenas no dia 2 de janeiro de 2023 que a lei n°13.145, do estatuto de pessoa com deficiência, entrou em vigor, obrigando assim, a todos os cinemas disponibilizarem recursos de acessibilidade para que as pessoas com deficiência auditiva ou visuais tenham acesso a tais conteúdos através da audiodescrição, legendas descritivas e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).
A jornada da independência
O filme não revela, mas talvez essa tenha sido a primeira vez que Leonardo foi ao cinema. Com uma mãe extremamente protetora, ele não podia fazer nada sozinho, inclusive um intercâmbio que era seu grande sonho. A situação abalou seu desenvolvimento como um jovem, tendo em vista essa privação de liberdade e independência.
Com um enredo assertivo ao utilizar frases capacitistas vindas daqueles que mais amamos, é facil notar quando Laura (Lucia Romano), sua mãe, pergunta sobre “quem vai aceitar um garoto cego” ao dizer que ele não poderá realizar um intercâmbio, o que era ficção começa a contrastar com a realidade. Vemos Leo sendo um “garoto comum de sua idade” ao sair de casa escondido, comparecer a festas e começou a ter um interesse amoroso, que no caso da trama, foi por seu amigo Gabriel.
No entanto, faltou abrir espaço para uma discussão extremamente importante que é a falta de ações de acessibilidade. Ao trazer cenas apresentadas de maneira quase utópica, Leo tem acesso a uma máquina de escrever em braille e alguém sempre ao seu lado para ditar o que escrever, a trama se esquece que, segundo um estudo da UNB, 74% dos mais de 500 mil cegos presentes no Brasil, ainda são analfabetos. Sem falar na questão romântica que é apresentada, em que o jovem se assume gay e não recebe nenhuma piadinha ou ameaça de morte.