Em “Queda Livre” até lugar nenhum
- 29 de março de 2021
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O cancelamento do século XXI à luz do diálogo entre Black Mirror e Galileu Galilei
Ana Clara Silveira
O pai da ciência moderna, Galileu Galilei, elucidou há séculos que dois corpos abandonados no vácuo à certa altura chegam simultaneamente ao solo independente das massas. Isso devido à aceleração gravitacional aplicada igualmente sobre os objetos.
Os termos parecem complexos, mas a teoria é simples. Se um elefante e uma pena caíssem da mesma altura sem que houvesse interferência do ar, colidiriam ao mesmo tempo com o chão. Embora a teoria física seja levada em consideração com frequência para fins acadêmicos, o autor de Black Mirror se apoderou do termo cunhado no século 17 para intitular o primeiro episódio da terceira temporada da série. E, ao que parece, acertou com precisão na escolha.
Black Mirror não erra
A série – que volta e meia surge em nossas análises – tem espaço de sobra para discussões que se mostram atemporais. Curiosamente, após dez anos do seu lançamento, estamos mais próximos da realidade de cada episódio do que nunca. Uma geração marcada pela desigualdade social, colapso psicológico e outras causas que com a pandemia da Covid-19 potencializaram a sensação de “fim do mundo”.
Mas por que “Queda Livre” seria o melhor título para o episódio supracitado? No enredo, Lacie, a personagem principal, vive em uma sociedade em que os privilégios são definidos pelos likes. E tudo parece fazer sentido, especialmente pela cortesia em que as pessoas tratam umas às outras, se não fosse pela motivação inapropriada. Tal ponto me leva a crer que os fins não justificam os meios e, mais do que isso, faz-me questionar: como somos capazes de aprovar ou reprovar alguém de acordo com seu potencial nas redes sociais?
Lacie, embora não seja a mais popular, tem uma excelente pontuação, ou seja, recebe estrelas constantemente quando avaliada por amigos, colegas de trabalho e outras pessoas em suas redes sociais, e consegue muitos benefícios por meio disso, mas não todos. Por conta daqueles que não possui, sua busca desenfreada por um lugar ao sol faz com que ela se submeta a uma série de comportamentos contrários à sua vontade.
Fato é que a realidade virtual dá as mãos com tanta força ao cotidiano que se torna impossível dissociar as pessoas do recorte que apresentam em suas redes. E, embora muitos digam, é preciso reforçar: redes sociais não representam a totalidade da vivência humana. No caso desse episódio, ao contrário, desumaniza as relações e as condicionam a um regresso.
Queda coletiva
O ponto alto da série “Black Mirror”, ou espelho negro – referindo-se às telas dos celulares, televisões ou qualquer outro aparelho – é o diálogo que fica quando o episódio acaba. Enquanto os pontos de Lacie despencam sem qualquer interferência, totalmente no vácuo, tal qual no que foi descrito por Galileu, nós também caímos, simultaneamente e colidimos juntos.
O cancelamento do século 21 parece uma esfera oposta ao que a personagem Lacie vive no episódio, mas não é. A necessidade de aceitação em um grupo é natural. Dentro ou fora das telas, sentimos que o “sim” do outro nos acalenta e abraça. Então, por que cancelar tem se tornado uma ação cada vez mais fácil e corriqueira?
Ainda que aproxime por um lado, por outro, as redes sociais lhe empoderam de palavras que, provavelmente, face a face não seriam ditas. Essa sensação de coragem, embora falsa, tem dado às pessoas a possibilidade de julgar com uma estrela, duas ou cinco, quem merece ou não um lugar no topo da cadeia virtual.
Esquecemos que no final da história, todos estamos sob a mesma ação gravitacional, no vácuo das nossas sensações sem escuta. Colidimos juntos quando cancelamos, menosprezamos, anulamos, sugamos o direito de expressar, de errar… afinal, não erramos todos?
E, se os erros são gravíssimos, para onde foi a nossa vontade de educar sem armas apontadas? O texto tem perguntas que não serei capaz de responder. Mas se há reflexão, já nos basta.
A suma é que Lacie – tal qual muitos de nós – se expõe incansavelmente a uma ideia distorcida e distante de quem ela é. Nos últimos segundos, nada sobra, além das suas vontades mais selvagens. Cancelada do sistema, despencando em seus números, colidindo… E no final, não importam as estrelas. A queda dói. O vazio é assustador. E o pior: ainda não entendemos… temos caído no mesmo abismo e compartilhado a colisão.