A vida após o pesadelo
- 30 de outubro de 2017
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- Thamires Mattos
- Posted in Sessão Cultural
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Em meio a tanta dor nasce a solidariedade em sua forma mais pura. Se é verdade que a arte imita a vida, podemos ter esperança no ser humano a despeito de todas as tragédias que já provocamos direta ou indiretamente
Mariela Espejo
A vida fica corrida para todos. Adultos no trabalho, crianças na escola. Tarefas de casa, provas, negócios, dívidas, reuniões. Nossos dias estão cheios de compromissos, a ponto de chegarmos a viver de modo automático e perder de vista o que realmente importa. É como se precisássemos bater de frente com a morte para abrir os olhos à vida.
Essa foi a experiência da família Belón, que sobreviveu ao tsunami de 2004. Henry e María e os filhos Lucas, Tomás e Simón. O grupo estava de férias na Tailândia quando aconteceu o terceiro maior terremoto submarino da história.
Em O Impossível, (filme de 2012 dirigido por Juan Antônio Bayona), os momentos de desespero vividos pela família bem como a angústia dos milhares vitimados pela catástrofe são retratados. O diretor usou a história para exemplificar a complexidade do inesperado na vida das pessoas. O fato de que, pegos em um acaso como este, a maioria não teve oportunidade para pedir perdão, demonstrar preocupação pelo outro ou apenas dizer: “eu te amo”. O caso da família Belón representou o milagre (a quase impossibilidade) de um novo encontro entre todos e a segunda chance. O filme apresenta um aspecto fundamental da vida. A necessidade de demonstrarmos interesse pelo próximo. Ao mesmo tempo, insere o espectador profundamente no drama, trazendo a noção mais realista de quem nós somos frente a natureza.
13 anos atrás, aproximadamente 230 mil pessoas perderam a vida nos países afetados pelo tsunami. Cada uma delas com seus próprios afazeres e planos a realizar. Mas nessa manhã do 26 de dezembro, todos foram pegos de surpresa. O mar invadiu suas vidas sem pedir licença. Em situações assim, a reflexão implicita é o desconhecimento humano completo do que está por vir. Por mais que pensemos ter o controle das situações, isso é uma inverdade. Os Belón não escolheram estar no lugar e momento exatos do desastre. Só aconteceu. E quem pensa que está no controle da sua vida, está equivocado.
Frente a situações como esta não há o que fazer. Por mais profissionais que sejamos, dinheiro e bens que possuamos e experiência que tenhamos, não podemos deter as ondas. Nesse jogo ninguém tem vantagem. O executivo que costuma chegar no escritório bem vestido e com cabeça erguida, é sacudido pelo mar do mesmo jeito que o “tio da limpeza”. Frente ao poder da natureza não somos nada. Frente a ela somos iguais.
A fúria do mar separou a família por dois dias e meio. A mãe e o filho mais velho para um lado e os mais novos com o pai, para o outro. Após o desastre, foram auxiliados por pessoas que recusaram pensar nelas mesmas em primeiro lugar. E eles, por sua vez, também foram movidos pela compaixão.
Para María, o momento mais difícil foi ao sair da agua. Nesse instante ela se viu sozinha. Depois de segundos que passaram como horas, lhe pareceu ver a cabeça do seu filho mais velho, Lucas, flutuando a uns metros dela. De fato, era ele. Agora ela tinha uma razão pela qual viver. Juntos, mãe e filho resgataram uma criança que ficou presa nos escombros. Outro motivo para continuar em pé. Já no hospital, as feridas de María punham sua vida em risco. Mesmo nessa condição, manda ao seu filho fazer alguma coisa útil enquanto ela fica em cama. Desconcertado, Lucas escuta um homem desesperado, gritando o nome dos seus parentes. A partir deste momento, se dedica a procurar os familiares perdidos e consegue que um pai e seu filho se encontrem. Lucas sente satisfação por ter ajudado. Mas ao mesmo tempo lembra que seu pai não está com ele.
Henry, por outro lado, conseguiu ligar para casa porque um desconhecido emprestou a ele o telefone. O ato é sublime. Pois o dispositivo não tinha muita bateria e o dono também estava à procura da sua família. O reencontro é emocionante para quem assiste. Para quem o vivenciou, uma alegria inexplicável. Já na hora de partir, o privilégio do resgate deixava a consciência pesada, pois ali ficavam seres humanos como eles, mas sem possibilidades de recuperação, com o coração em pedaços e muitos deles sem vida.
O Impossível revela duas facetas de uma singular época humana. A violência da natureza, que responde, ataca, aqueles que a dominaram e exploraram. Ao mesmo tempo, este homem selvagem – que refinou (com tecnologias e ardis) uma nova espécie de selvageria – quando confrontado pela fúria da natureza vê emergir de si o instinto mais puro da humanidade: a abnegação, o “importar-se” com o outro.
Nos últimos dez anos a natureza tem mostrado-se cada vez mais selvagem. Tem respondido com mais intensidade os abusos humanos. “Desastre natural” é uma fraca nomenclatura. Não inocenta o homem de nada. Temos responsabilidade nestes episódios. É a atividade humana que provoca as mudanças climáticas descontroladas, aumentando a probabilidade de tais fenômenos.
É interessante perceber que no caos, a frieza e insensibilidade se apagam e a “humanidade” vem à luz. Quando perdemos tudo o que nos cegou, passamos a enxergar o que realmente importa. É no vazio da catástrofe que a selvageria do homem esmaece e sobra apenas o que deve significar algo: as pessoas. Quiçá este foi o maior aprendizado de Maria Belón.
Em meio ao drama da realidade mostrada pelo filme ainda é possível nutrir esperanças.. Se é verdade que a arte imita a vida, podemos crer na existência de pessoas que têm empatia verdadeira em meio a tanta insensibilidade.