Antes desinformado, do que mal informado
- 5 de setembro de 2017
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- Thamires Mattos
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O público precisa sentir o odor da mentira, “a verdade é descoberta, não distribuída, é um ideal a almejar, não um direito indolente”
Carolina Inthurn
No começo deste ano, vazou a informação de que Denzel Washington teria mudado seu voto de Hillary para Trump, durante as eleições presidenciais dos EUA. O problema não é que vazou. O problema é que a notícia era falsa. Tempos depois, durante uma entrevista sobre o caso, Denzel sintetiza a miséria do jornalismo contemporâneo com uma frase fenomenal: “Se você não lê as notícias, fica desinformado. Se lê, fica mal informado!”.
Hoje em dia vale tudo para prejudicar um inimigo ideológico. O engajamento sem escrúpulos que a internet permitiu é um desafio para o jornalismo atual. O perigo não é pequeno, porque a tendência é que isso cresça cada vez mais. Uma pesquisa feita pela agência Associated Press e o American Press Institute concluiu que o fato de uma pessoa que compartilhou uma notícia ser considerada confiável influencia bem mais na confiança que o leitor deposita na informação que na fonte de onde saiu a notícia.
Que o público já está saturado da palavra “pós-verdade” é um fato. Mas precisamos dar a importância que esse fenômeno merece; pois ele está colocando em jogo nossos valores, conceitos relacionados a verdade, honestidade e bom senso. O editor-executivo da Folha de S. Paulo, Sérgio Dávila, afirma que o jornalismo “serve como um detergente contra a intolerância, que infelizmente tende a crescer num clima de polarização política e divulgação de notícias falsas como o que vivemos no Brasil e no mundo hoje”. Em artigo no Observatório da Imprensa, a jornalista Katharine Viner ressalta que “o jornalismo sério, de interesse público, é exigente e atualmente é mais necessário do que nunca. Ajuda a manter honestos os poderosos; ajuda as pessoas a compreenderem o mundo e seu lugar nele. Os fatos e a informação confiável são essenciais ao funcionamento da democracia – e a era digital tornou isso ainda mais óbvio”.
Um exemplo bem clichê e esgotante é o das eleições presidenciais dos EUA, como citado no primeiro parágrafo. Muitas notícias de Donald Trump eram falsas e foram propagadas por grandes veículos nacionais, como a CNN. Inclusive, de que o atual presidente dos EUA não ganharia as eleições. Você consegue imaginar o impacto que isso causa na sociedade? Uma coisa é alguém ser prejudicado por alguma fakenews a seu respeito. Outra, com consequências muito maiores, é quando um país tem seu destino influenciado pela distribuição de notícias falsas. Isso nos mostra um cenário crítico da profissão: se o jornalismo não consegue combater de frente o problema, é pautado por ele.
Qualquer pauta serve, na falta de pauta
Há 23 anos atrás, o caso da Escola de Educação Infantil Base, na zona sul de São Paulo, estava pegando fogo. Os donos, acusados de pedofilia, foram julgados e condenados pela opinião pública e a maioria dos veículos de mídia.
Foi noticiado que Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada, Mauricio Alvarenga e Paula Milhim Alvarenga provocavam ações perversas com as crianças, além de drogar as crianças e fotografá-las nuas. Segundo as mães das crianças, os atos aconteciam na casa de Saulo e Mara, pais de um dos alunos. O Jornal Nacional chegou até mesmo a sugerir o a contaminação pelo vírus da Aids.
Manchete do jornal ‘Notícias Populares’
O delegado responsável pelo caso, Edélson Lemos, encaminhou as crianças ao Instituto Médico Legal (IML) e conseguiu um mandato de busca e apreensão no apartamento de Saulo e Mara. Segundo a jornalista Alice Andrade, “nada foi encontrado na residência do casal durante a busca da polícia. Devido à falta de provas, o delegado retornou à delegacia, o que gerou indignação nas mães e elas acionaram a Rede Globo”.
Mesmo assim, diante uma leitura parcial do laudo do IML, os envolvidos foram condenados. Logo depois da prisão preventiva de Saulo e Mara, os advogados tiveram acesso ao telex do IML e notaram que o seu resultado era inconclusivo. Segundo Alice, “o documento alegava que as cicatrizes no menino poderiam ser tanto de um abuso sexual como também de uma diarreia forte. Mais tarde, a própria Lúcia Eiko confirmou que seu filho sofria de constipação intestinal”.
O cenário começou a se inverter. Depoimentos de funcionários da Escola Base, bem como outras provas da inocência dos seis passaram a surgir na defesa deles. No dia 22 de junho de 1994 os suspeitos de abuso sexual de menores foram inocentados pelo delegado Gérson de Carvalho.Mas era tarde, muito tarde. Inocentar perante a lei é importante, mas e a responsabilidade de inocentá-los perante a sociedade?
“Uma vez condenados pela mídia e, consequentemente, pela maioria da sociedade, as reais vítimas do caso Escola Base jamais recuperaram a honra e nem a paz. Mesmo após o encerramento do caso, os veículos de comunicação não se retrataram da forma correta. Muitos divulgaram que as investigações cessaram por falta de provas; no entanto, entre faltar provas e a confirmação da inocência dos seis há uma enorme distância”, conclui Alice Andrade.
O caso Escola Base se encaixa no termo “old, butgold” (tradução literal: velho, mas valioso). Não serve só de lembrança de um jornalismo mísero, sem checagem e escrúpulos. Mas nos mostra o perigo da mídia que por não saber driblar as notícias falsas, começa a ir de encontro a elas.
Reavaliando conceitos
Se o jornalismo quer sobreviver, terá de começar a rever seus conceitos. É necessário tomar uma postura profissional diante esse avalanche de pessoas desorientadas. Guilherme Alpendre, secretário-executivo da Abraji, afirma que “a insistência no termo ‘fakenews’, que na verdade é uma contradição, tem um efeito muito negativo sobre a credibilidade de jornalistas e empresas de mídia”. O ideal, segundo ele, seria separar o joio do trigo e peneirar o que, de fato, serve de interesse público. No livro Post-truth, o jornalista Matthew d’Ancona afirma que “o contra-ataque precisa ser emocionalmente inteligente, além de rigorosamente racional.” O público precisa sentir o odor da mentira. “A verdade é descoberta, não distribuída, é um ideal a almejar, não um direito indolente”, conclui o autor.