Violências diferentes, porém, a mesma luta
- 21 de março de 2017
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- Thamires Mattos
- Posted in Sessão Cultural
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Embora as referências em questão sejam ficção cinematográfica, é impossível não pensar em todas as Waris, Watsons e Preciosas espalhadas pela imensidão do cosmos, no nosso século, no mundo real. Mulheres que não sabem que podem dizer SIM ao prazer sexual, SIM à carreira, NÃO para todo tipo de agressão que lhe seja dirigida.
Tábbta Rocha Morais
“Violência contra a mulher, isso vai dar um baita texto”, pensei. Saí radiante da reunião de pauta, pensando em como me sentaria no sofá de casa, assistiria aos filmes propostos e condenaria com meus escritos toda a violência de gênero que eu pudesse perceber nas cenas.
Convidei meus amigos para participar deste momento “cinematográfico”. O primeiro dos filmes da lista selecionada seria Flor do Deserto.O trabalho é de 2010 e foi dirigido por Sherry Hormann. Quando expliquei a todos qual era o tema da película (a história de uma menina vítima da circunsisão feminina na Somália), vi meus amigos se dividirem em dois grupos: homens e mulheres. Nenhum dos homens ficou na sala. Só as mulheres assistiram.
Este fato em si não foi o fim da decepção quanto a postura e entendimento do tema. Ao término de nossa sessão, na cena em que Waris discursa na sede da ONU, contando quanta dor lhe foi causada, começamos um esquisito debate sobre a ingratidão de reclamar de detalhes simples como a “obrigação de cozinhar para os homens”. Afinal, há mulheres em situações extremamente piores. Naquele momento percebi que minhas reflexões tomariam rumos muito diferentes dos esperados. Eu, sequer, entendia (quando recebi a pauta) a profundidade da missão a mim confiada no desenvolvimento de um texto que se prestasse a relacionar os trabalhos artísticos sugeridos pelos editores.
Restavam outros dois filmes na lista a ser analisada. Sugeri O Sorriso de Monalisa. Filme de 2003, dirigido por Mike Newell. Os únicos comentários que ouvi durante a primeira hora de filme foram: “que preguiça desse filme” e “já estou com sono”. Confesso que o último comentário também poderia ter sido meu, naquele momento. Me assusta pensar que, ao entrar em contato (ainda que na ficção) com um trabalho tão fantástico quanto o de Katherine Watson (professora protagonista do filme), minha mente resistia ao exercício da reflexão aludida pelo trabalho. As cenas apresentadas falam de uma educadora que tenta quebrar os paradigmas comportamentais e culturais a que suas alunas eram submetidas como mulheres em uma sociedade machista, além de buscar a subversão de condições impostas também a ela em seu papel na educação. Ainda me pergunto como pude sentir sono.
Por último, veio a experiência com Preciosa – Uma História de Esperança. O filme, também de 2010, foi dirigido por Lee Daniels. Assisti sozinha, na madrugada, no silêncio do quarto. Foi melhor. Na solidão audiovisual experimentada não pude ter reação diferente: um enorme alívio por jamais ter vivido nada semelhante. Por nunca ter sofrido nenhum tipo de violência. Por ter uma sorte diferente de Preciosa.
Quatro dias depois de ver os filmes, finalmente me sentei para escrever. Confesso: ainda sem entender como podemos nos orgulhar pela pós-modernidade, pelo fim do confinamento comportamental, pelo feminismo do “meu corpo, minhas regras” e, ainda assim, ser tão medíocres a ponto de achar que estamos bem apenas porque a violência e preconceito que sofremos todos os dias é diferente da violência que vemos nos dramas dos filmes.
Já que estou tratando de diferenças e violência, me dedicarei a alguns pontos que merecem destaque, em relação aos excepcionais trabalhos artísticos que me foram indicados para análise nesta edição.
Em primeiro lugar, as três protagonistas sofreram tipos diferentes de violência. Waris (A Flor do Deserto) foi circuncidada aos 3 anos de idade, e sequer sabia como seu corpo deveria ser, menos ainda que tinha direito de viver qualquer tipo de liberdade sexual, ou de sentir prazer. Ela teve seu corpo e sua mente moldados no formato da violência.
Já a professora Katherine Watson entendia seu potencial como mulher, a liberdade a que tinha direito. Inclusive, desfrutava desta visão, embora o sofrimento por ela enfrentado (talvez um tipo de violência) era a constante frustração de erguer os véus do empoderamento feminino sem jamais alcançar (verdadeiramente) a mente, o entendimento de seu público. Sofria pela alienadora e machista educação imposta às jovens sob sua tutela. Jovens que, embora talentosas e inteligentes, capazes de galgar os maiores degraus do mundo, eram doutrinadas pela cegueira do machismo. Um discurso em que o lugar da mulher se resumia ao de excelente anfitriã, esposa e dona de casa.
Um dos pontos válidos de reflexão a respeito dos tipos de violência retratadas em O Sorriso de Mona Lisa, é o fato de que aquelas mulheres eram adestradas para não querer. Elas não queriam ser livres porque eram como pássaros que viviam em gaiolas douradas.Tinham todo suprimento necessário e talvez até uma falsa brisa, para simular a liberdade do campo. Por que querer cursar Direito e ser independente, se sou uma aluna formada no colégio mais renomado da região e, em breve, terei um belo marido, uma bela casa e uma bela máquina de lavar roupas?
Preciosa, diferente das outras personagens já citadas, queria algo diferente, algo melhor. Após tanto abuso sexual causado pelo pai, e tanta violência psicológica provocada pela mãe, ela sabia que existia algo melhor, e mesmo sem saber exatamente pelo que lutar, ela lutou para ser livre. Lutou por si mesma.
É claro que estamos falando apenas de ficcão cinematográfica. Mas é impossível não pensar em todas as Waris, Watsons e Preciosas espalhadas pela imensidão do cosmos, no nosso século, no mundo real. Mulheres que vivem sem saber que podem SIM ter prazer durante o sexo, que podem SIM nunca se casar e mesmo assim ser mulheres bem sucedidas, que podem com toda a certeza dizer “NÃO” para qualquer tentativa de assédio sexual ou abuso psicológico porque são donas de si.
Eu nunca sofri violência física. O máximo que posso dizer é que me encaixo no perfil da professora Watson. Tive acesso a esclarecimento e oportunidade. Neste sentido, sou livre. Ainda assim, me reduzo repetidas vezes ao “comportamento reprimido” típico do feminino. SÓ POR SER MULHER. Pior que eu, obviamente, estão as muitas, muitas, muitas mulheres como Waris, que mal se sentem no direito de conhecer o próprio corpo, ou como Preciosa, que sequer têm condições de afastar-se de um ambiente violento.
Ao fim desta jornada que me foi atribuida, de tecer relações sobre os filmes e o tema da misoginia, posso dizer que o brilho que tinha nos olhos ao ter sido designada para a pauta desapareceu desde que cheguei à compreensão de quão imersa em preconceitos de gênero me encontro. Sim, sou preconceituosa sem perceber. Meus amigos também são assim. Minha família igualmente.
Já fui inferiorizada por ser mulher, vi minha mãe passar por isso, e como mulher, principalmente depois desses filmes, sinto o dever de lutar para nunca reproduzir esse tipo de comportamento. Lutar pelo alcançe de minhas metas e sonhos, pela conquista daquilo que mais desejo como mulher, pela felicidade de provar e fazer entender que meu empoderamento não depende do que qualquer homem pensa que eu posso ou devo fazer.