O golpe militar em cifras
- 24 de outubro de 2016
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- Thamires Mattos
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Talvez estejamos passando pelas mesmas amarguras da idade das sombras brasileira, todavia, com uma violência camuflada
Luciana Ferreira
Não apenas de prisões, torturas e balas vive um golpe de estado. As atrocidades acometidas na Ditadura Militar, “Idade Média” da nação brasileira, também foram cantadas em versos, rimas e sintonia de melodias escritas e interpretadas por grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB). Nomes emblemáticos, não apenas pelo inquestionável talento, mas pelo envolvimento frenético com as lutas populares.
Atores, cineastas, poetas, artistas plásticos, escritores, músicos foram obrigados a sair de sua pátria amada e se aventurarem por terras longínquas, suplicando a Deus, aos moldes do saudoso poeta Gonçalves Dias, que não morressem sem retornar para a “terra de palmeiras, onde canta o sabiá”.
A lista dos intelectuais que cantaram as injustiças da ditadura é vasta. Por ela perpassam nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e o grande expoente da MPB, o músico, dramaturgo e escritor Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque.
Filho do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim, Chico Buarque se viu desde de cedo envolvido com a arte em suas mais distintas instâncias. Sua casa era assiduamente frequentada por personalidades brasileiras, como Vinícius de Moraes e Tom Jobim.
Era leitor assíduo de imponentes escritores russos como Dostoievski e Tostoi, franceses, como Balzac e Roger Martin, além da prata da casa, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, dentre outros. Toda essa bagagem cultural adquirida desde os primeiros raios da juventude, justifica a poeticidade, beleza, profundidade e engajamento de suas músicas.
Várias canções de Buarque descrevem as amarguras da ditadura militar. E é possível conceber Chico através da ditadura.
Chico nas entrelinhas da ditadura
O enfrentamento de Chico com a ditadura começou já em 1966 quando teve a música Tamandaré censurada por conter frases que ofendiam ao patrono da marinha, cujo busto estampava a antiga cédula do cruzeiro. Em 1968, participa da passeata dos cem mil contra a ditadura militar e por consequência é intimado para depor assim que o Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro, é decretado. Vendo o cerco se fechar, se vê obrigado a partir para Europa.
Exilado no país da glamourosa torre Eiffel, o incansável compositor continuava a cantar as causas de seu país de origem. Em 1970 retorna ao Brasil e escreve a música Apesar de você, um samba que expressava sua indignação ao retornar ao país verde e amarelo e ver que por aqui quase nada mudara. Na canção ele atacava diretamente o general Emílio Garrastazu Médici que, embora alegasse ser aquele o ano do “milagre econômico”, cometia as piores atrocidades, chegando a censurar a mídia e torturar os ditos comunas.
Posteriormente, assistindo a todas as suas músicas serem censuradas, ele adota o pseudônimo Julinho da Adelaide, à semelhança do que fez o grande escritor português Fernando Pessoa, com os seus mais de 70 heterônomos, dos quais os mais famosos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
De uma forma irreverente, sarcástica, Julinho de Adelaide consegue emplacar letras como Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro, com críticas ferrenhas a ditadura. No samba Jorge Maravilha (1973), por exemplo, Chico alfineta o poderoso militar Ernesto Geisel, que embora não gostasse dele, tinha uma filha “fã do compositor de olhos claros”. Ele parece se deliciar ao declarar “você não gosta de mim, mas sua filha gosta / Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando”.
Se sozinho, Buarque foi feliz ao produzir tamanha obra, quando se juntou a outros ícones da MPB, a poeticidade e a crítica social exalou sem barreiras pelos poros sociais. Em parceria com Gilberto Gil, no ano de 1978, Chico compõe a música Cálice. Emaranhada pela temática religiosa, a canção foi pensada em uma sexta-feira da Paixão e utilizando símbolos comuns a essa data religiosa, metaforizava a situação vivida pelos brasileiros no ápice da ditadura militar. O jogo de palavras, embalado pela melodia sacra, representava o “grito desumano” de uma nação embebecida pela “bebida amarga”, silenciada pela “força bruta” de um monstro que emergia da lagoa. Tudo isso abrilhantado pela oscilação entre o termo “cálice” e a ordem incisiva dos militares, “cale-se”.
As composições desde então não pararam mais. E é bem provável, que enquanto redijo essas humildes linhas, o Chico esteja em algum lugar dessa vasta terra de sombra e água fresca esquadrinhando sua mente, a fim de compor letras que denunciem o momento que o Brasil está vivendo. Afinal, talvez estejamos passando pelas mesmas amarguras da idade das sombras brasileira, todavia, com uma violência camuflada.