Você decide
- 5 de setembro de 2017
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- Thamires Mattos
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Olhar para o futuro e para o jornalismo com olhos de esperança, não basta. É preciso também que os consumidores de notícias se façam indivíduos questionadores e críticos, para que as notícias falaciosas não encontrem mais razão de existir
Sabryna Ferreira
A notícia invadira os ouvidos de Bentinho com uma força não pretendida por José Dias. Aquela deveria ser uma visita agradável, mas tornou os dias que se seguiram amargos. Como poderia Capitu viver feliz enquanto ele de saudade morria? Era a pergunta que não deixava sua mente aquietar-se um só minuto. As palavras do agregado, sem pretensão alguma – ou, talvez, com todas elas empenhadas em apagar do coração do rapaz o amor precoce – foram as primeiras a desenhar na mente do moço uma Capitolina desleal sem que, comprovadamente, ela o fosse. Há doutores das letras que afirmam a possível inocência da dona dos olhos de cigana oblíqua e dissimulada, uma vez que a história é contada pelo prisma de um homem ciumento e de mente imaginativa. Mas quem, senão Joaquim Maria Machado de Assis, pode afirmar o que foi ou o que deixou de ser? A obra Dom Casmurro é um exemplo considerável de “fato alternativo”, como sugere Kellyanne Conway, assessora de Donald Trump. A verdade sobre o mistério que o imortal Joaquim levou para o túmulo (“Capitu traiu Bentinho? ”) é uma só: você decide.
Você deve estar se perguntando o que Dom Casmurro tem que ver com esta edição sobre pós verdade, do Canal da Imprensa.Em se tratando de literatura ficcional, interpretação é a palavra de ordem. E, mesmo que a intenção do autor seja uma, o leitor está livre para imaginar tantas outras interpretações quanto lhe forem possíveis. Mas quando se trata do jornalismo, aquele que se compromete com a verdade dos fatos e se propõe a ser imparcial, essa regra vale? O termo pós verdade ganhou fama na última eleição presidencial do Estado Unidos, mas este fenômeno é quase tão antigo quanto Dom Casmurro.
Pai e filha
A pós-verdade tem a quem chamar de pai: Edward Bernays. O austríaco mudou-se para Nova York com a família quando ainda era criança. Cresceu fisicamente longe de seu ilustre tio, Sigmund Freud, mas aproximou-se através de seus escritos quando ainda era um jovem aluno em Cornell. Foi assim que ele se apropriou das ideias do tio de que as massas precisam ser conduzidas por pessoas de pensamentos mais elevados para que os instintos humanos não destruam a sociedade. E para tanto, Bernays concluiu que seria necessário elaborar técnicas para desenvolver esse processo.
Aos 25 anos, propôs ao então presidente dos Estados Unidos, WoodrowWillson, que justificasse ao povo o ingresso na Primeira Guerra Mundial. O discurso messiânico ganhou popularidade, e, assim, lá foi o USA Army “democratizar a Europa”. Vendo o sucesso de sua ideia, Bernays percebeu que poderia usar suas habilidades de outras maneiras.
Em 1920, mulheres fumantes eram mal vistas. Um tabu social. Certo fabricante de cigarros viu que perdia uma boa clientela com isso, e resolveu contratar Edward para solucionar o problema. Este, por sua vez, procurou um psicanalista, que acabou por lhe revelar que contrariar a convenção social seria um símbolo de resistência ao machismo. Bolar uma boa propaganda que mexesse com o psicológico feminino foi justamente o que Bernays não fez. Do contrário, inventou uma notícia. Pagou para que 10 mulheres se deixassem ser vistas fumando em meio ao grande desfile da Quinta Avenida e pediu a elas que chamassem os cigarros de “tochas da liberdade”. Convidou jornalistas e, voilá! No dia seguinte, a falsa militância estampava todos ou jornais.
Depois desta, muitas outras portas se abriram para Edward Bernays. Foi empresário bem-sucedido, escritor de vários livros e, hoje, tem seu nome associado à arte das relações públicas, da publicidade e da propaganda, a que muitas empresas recorrem. Foi incentivador da campanha anticomunista durante a Guerra Fria e peça fundamental para a derrocada do presidente guatemalteco, JacoboÁrbenz.
O invento de Bernays tornou-se algo tão natural que parece sempre ter existido. O coração do criador da pós-verdade deixou de bater em 1995, aos 103 anos.
Brasil, séc. XXI
A palavra “pós-verdade” foi eleita a palavra do ano, em 2016, de acordo com o Oxford Dictionaries, produzido pela Universidade de Oxford.No contexto atual, e na prática, a pós verdade acontece de forma engenhosa, mas é coisa simples. Se você já viu e ouviu a notícia da morte de alguém muito famoso e depois ficou sabendo que era mentira, por exemplo, já sabe como funciona. Mas a troco de que isso é veiculado? Este é um exemplo simplista, claro, mas a essência da coisa envolve assuntos que vão do superficial e fútil ao relevante e determinante.
De acordo com o jornalista e doutor em Sociologia da Comunicação, Ciro Marcondes Filho, o que caracteriza, hoje, as chamadas fakenews são as notícias inventadas, especialmente em momentos decisivos para a política. O exemplo bem taxativo e que trouxe o tema à discussão na mídia foi justamente as polêmicas que envolveram a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“A pós-verdade não é um mito, é um fato concreto que caracteriza esses nossos tempos de total ou quase total desorientação da opinião pública, em vista da avalanche de relatos ou de afirmações suspeitas que abundam na internet”, observa Marcondes. Partindo do pressuposto de que cada ponto de vista é a vista de um ponto, é importante considerar que um mesmo fato pode ter diferentes interpretações. Ciro defende que a verdade sempre foi um termo para opressores, pois significa apenas uma leitura, uma visão de mundo que seria correta e todas as demais, necessariamente, falsas. “Ora, sabemos que quanto mais pessoas há, maior o número de interpretações. Sendo assim, quando um governo, um partido político, uma organização religiosa, um ditador diz que possui ‘a’ verdade, está mais do que claro que se trata de tiranos, querendo impor aos demais sua visão particularista, pessoal, subjetiva, como se fosse a visão de todos”, analisa.
Leonardo Sakamoto, jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), prefere chamar o fenômeno de “pós de fato”. A verdade misturada à mentira – ou esta última, repetida muitas vezes – toma ares de verdade. Segundo Sakamoto, os casos podem ser entendidos como a corroboração de narrativas não por fatos ou argumentos, mas por elementos nascidos de emoções e sem comprovações, a exemplo de Bento Santiago. “O fato, em si, acaba sendo irrelevante em detrimento das implicações do mesmo”, explica o jornalista.
O filósofo e colunista da Folha de São Paulo, Luiz Felipe Pondéreconhece que o termo significa o ruídoinevitável, dado ao acúmulo de fontes. “Não há como ter certeza de nada. O mal-uso dessa condição é a pós-verdade. A importância disto é que na era das mídias sociais, essa condição torna-se normal”, opina. Irmãs siamesas, para Pondé, pós verdade e sociedade pós-moderna são “unha e carne”. “O relativismo é o traço sócio-insitucional e cultural associado a pós verdade”, completa.
Internet: a caixa de Pandora
Com o advento da tecnologia, o jornalismo precisou se adaptar às novas mídias digitais, onde cada vez mais,atores não especializados operam na área pelo simples click de compartilhar. O que, antes, era veiculado em papel e levava meses para atingir um número considerável de pessoas, hoje, alcança milhares em poucos segundos. A partir disto, nasce a possibilidade de interpretações que podem fugir do controle e gerar outros fatos a partir dos desdobramentos de um primeiro.
Sakamoto discorda que a bolha da internet seja a causa de todos os males, até porque, o fenômeno existe antes do surgimento da rede, mas, agora, o mecanismo tem um papel de catalizador de processos históricos. “A internet é um ambiente em que, quem não está devidamente alfabetizado em mídia, de forma básica, não sabe identificar um argumento falacioso, que tem o objetivo de provocar suas emoções e fazer você concordar com um texto que você acha que é correto por concordar”, critica. A intenção seria fazer com que fatos objetivos sejam menos relevantes para a formação da convicção da opinião pública, ou de uma pessoa específica. “A tecnologia barateou e possibilitou o acesso, mas não garantiu que as pessoas desenvolvessem o espírito crítico suficiente para diferenciar um fato construído com base em informações falsas de algo que realmente aconteceu”, lamenta Sakamoto.
Uma vez que a imparcialidade deve ser considerada uma falácia, fenômenos como opós-fato colocam em cheque o que é a verdade e a credibilidade do jornalismo. Marcondes destaca que as notícias atendem a interesses, objetivos políticos ou ideológicos. Ou seja, servem ao jogo da política. “Uma pessoa pode ser assassinada, isso é um acontecimento. Sobre ela irão acontecer dezenas ou centenas de leituras possíveis, todas subjetivas, que caracterizarão o noticiário desde o mais extremo opositor, o opositor mediano, o que faz o jogo do meio, o apoiador mediano e o apoiador extremo. E o leque pode ser muito maior”, exemplifica.
Quem poderá nos defender?
Discutir “pós verdade” ou “pós fato” pode parecer assustador e dá a impressão de que todo conteúdo noticioso é falso e os consumidores estão sendo constantemente enganados ou manipulados. Seria essa uma realidade ou um fato alternativo? Ciro aponta que notícias falsas são produzidas a partir da deturpação de fatos verdadeiramente ocorridos, mas que trazem uma possível carga de veracidade. Além disso, elas são bem construídas a ponto de gerar o efeito de viralização nos demais. Evidentemente, na produçãodessas notícias há pouca ou nenhuma apuração, e passa longe do interesse do gerador do conteúdofazê-lo. “Notícias falsas podem ser fabricadas intencionalmente por grupos ou partidos políticos, grupos de pressão, pessoas isoladamente e relacionam-se com notícias virtualmente verdadeiras. Quer dizer, uma falsa notícia tem que ter algum traço de credibilidade, alguma aproximação com o real, algo que faça o leitor ou o espectador considerar que pode ser verdadeira”, argumenta.
Não só as interpretações de um fato travestido de post pulverizado nas redes devem ser levadas em consideração. Pondé aponta para o impacto nas relações humanas, pois é próprio do ser humano ter uma tendência natural à paranoia, ao fanatismo político, a niilismo moral e à cacofonia nas redes.
Concordando com Sakamoto, Ciro afirma que as pessoas têm facilidade em acreditar em redes de televisão, em políticos “até então honestos”, em versões oficiais, se forem fatos que se acomodam em suas próprias posições políticas e ideológicas. “Algumas mentiras são boas de se ouvir, as pessoas acreditam, mesmo que elas sejam falsas”, admite. “Ninguém assiste a um telejornal para ouvir fatos que destoem de seu próprio posicionamento. No entanto, quando a própria rede monopolista de televisão muda sua estratégia e passa a criticar o candidato ou o político que até então valorizava, as pessoas refazem seus pontos de vista e acompanham o posicionamento da rede. Elas não mudam de opinião, elas atualizam a mesma posição política visto que uma importante instituição – em quem confiam – fez o mesmo”, salienta.
Engrenagem
Olhar para o futuro e para o jornalismo com olhos de esperança, não basta. É preciso também que os consumidores de notícias se façam indivíduos questionadores e críticos, para que as notícias falaciosas não encontrem mais razão de existir. Pondé sugere que a pós verdade pode ser neutralizada pela mídia se o tema for lançado para debate aberto. “Ainda que não resolva o problema, é preciso oferecer fontes mais claras, investir em pesquisa e pressionar os provedores das redes no sentido de assumir que veiculam mentiras”, propõe. Sakamoto acredita que a chave para essa mudança seria uma reforma na base educacional a longo prazo. Segundo o jornalista, temos duas possibilidades: a boa seria a conexão global permitida pela internet, possibilitando que o debate seja muito mais amplo e que, através dessas conexões, as pessoas fujam daquilo que é imposto pelos veículos manipuladores. A partir dessa interação, seria possível enxergar o problema e buscar soluções para resolvê-lo. Nisto, o jornalismo faz-se um agente fundamental no incentivo à análise de informações que nasce desses contatos, um facilitador de a conexões de pontos, e um impulsionador de filtragem informações de qualidade. A possibilidade ruim? A falta de preparação para colocar o supracitado em prática.