A razão de ser das distopias
- 5 de setembro de 2017
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- Thamires Mattos
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Há bastante tempo assisti um filme de Steven Soderbergh cujo título, traduzido no Brasil, era “O Desinformante”. A história, baseada em fatos reais, parodiando outro famoso filme norte-americano (O Informante) e estrelada por Matt Damon, contava o caso de Mick Whitacre, um bioquímico muitíssimo comum. O dito personagem, utilizando de um sem número de “fake-news”, sobe de sua simples função a executivo de alto escalão em uma empresa, além de tornar-se informante do FBI em uma investigação baseada em “fatos” para lá de irreais. Ou seja, baseada nos famosos “fatos alternativos”. Com a ascensão do debate sobre pós-verdades na atualidade, minha mente se volta a este longa todas as vezes que me ponho a refletir sobre o tema. Não é impressionante nossa capacidade de acreditar em fatos inverídicos, geralmente apresentados sem qualquer base, porque eles parecem responder nossas próprias convicções sobre certas coisas? Não consigo imaginar outra resposta, se não esta, para o fato de uma agência como o FBI se deixar enganar por um ambicioso e criativo bioquímico criminoso.
Candidato à presidência da França usou dinheiro público para construir uma mesquita; cada semana que o Reino Unido permanece na UE representa uma perda de US$ 470 milhões; Hillary Clinton participa de seitas satanistas; Denzel Washington mudou, na última hora, seu voto de Hillary para Trump; Gilberto Gil chamou Sérgio Moro de “juizinho fajuto”. O que todas estas afirmações têm em comum? O fato de que não passam de boataria, de mentiras que foram partilhadas milhares de vezes nas plataformas digitais e produziram inacreditáveis efeitos sobre a opinião pública. Embora imitem um estilo jornalístico, este tipo de divulgação nada tem de compromisso com a realidade e valeu até mesmo um novo verbete no Oxford Dictionaries.
Não há dúvida quanto à natureza manipuladora deste tipo de informação, mas sua frequente emersão na atualidade produz uma dolorida preocupação: fake news colaboram para piorar a qualidade da política e das relações sociais de um mundo já em crise. É claro que este fenômeno não é nada recente. Desde que mundo é mundo a boataria manipuladora tem seu lugar garantido. Os pasquins italianos do século XVI, os canards franceses no século XVII, e a imprensa inglesa “marrom” e “amarela” no século XX são ínfimos exemplos. No entanto, o fenômeno da pós-verdade em tempos de internet tornou essa disseminação fácil, barata. Capaz de fomentar em escalas exponenciais o sentimento mais perigoso da humanidade: ódio.
Pós-verdades foram responsáveis por entronar e destronar um sem número de governantes, pela decapitação de rainhas e reis, a vitória nas urnas de candidatos absurdamente improváveis e notoriamente incapacitados à função. Cada um destes resultados citados só se concretizou porque encontrou força e sustentação em um “pensamento” de ódio e intolerância que só pode se engendrar nas raízes do medo humano. Medo do desconhecido, medo da transformação, medo do devir, medo da verdade, medo do fim de um modus vivendi, fim da espécie. A ironia do século é que no fim das contas ódio e intolerância tornam este desserviço informacional chamado “pós-verdade” o centro de decisões e posicionamentos que tem o poder de mudar drasticamente o futuro da humanidade. Talvez para um resultado ainda pior: a concretização dos medos.
O que a infestação da pós-verdade na contemporaneidade me mostra é que parecemos caminhar rumo aquilo que tentamos, (desesperadamente e revestidos de nosso ódio e intolerância), evitar, repelir. Uma enorme distopia. A distopia é a concretização falida de uma utopia. Situação de completa desesperança resultante de grandes promessas de liberdade, de realização dos sonhos, de qualidade de vida, de solução aos males terríveis, de proteção dos ambientes de incerteza, que falharam, COMPLETAMENTE, em formalizar-se. Ao contrário, estas promessas falidas converteram-se em sistemas mais opressores, amedrontadores, castrantes do que aqueles que, inicialmente, se queria evitar. A ficção adora a distopia como tema. Haja vista o surto hollywoodiano de produções do gênero (com destaque aos mais recentes, Jogos Vorazes, Divergente e afins). No entanto, trata-o como realidade apocalíptica muito distante. Não é.
A razão de ser de todas as distopias é a sustentação de pós-verdades. É a adequação de inverdades à uma visão de mundo estereotipada, amedrontada, intolerante. Porque pós-verdades foram divulgadas exaustivamente, sustentadas, dogmatizadas é que a distopia se faz real. Temos o nazismo aí, para provar que esta é a pura verdade. Nosso medo deveria ser este: perceber, em um belo dia, que todos os fatos divulgados parecem corroborar nossas próprias opiniões, nossos próprios medos, incentivar nossos preconceitos. Este é o perigo. Porque se é assim, certamente se está caminhando rumo a distopia.
A edição do Canal desta quinzena tratou do fenômeno da pós-verdade na contemporaneidade e os efeitos que algumas fake news exerceram em um mundo confuso e caótico. Esperamos que os textos sirvam ao esclarecimento e fomento do debate que nos leva na direção oposta a das distopias.
Enjoy!!!
Andréia Moura, editora-chefe do Canal da Imprensa