Uma Playboy sem limites
- 21 de março de 2017
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- Thamires Mattos
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Enquanto a Glamour deixa a desejar limitando toda a qualidade extraordinária de determinado indivíduo [mulher], as páginas da Playboy vão dos pecados mais misóginos a um jornalismo impecável. Há uma dicotomia que não se pode esconder. Uma violência simbólica que afirma o homem como intelectualmente superior.
José Eduardo Lopes
Era patriarcal. O resultado, uma sociedade misógina. Realidade ainda vivida em pleno século 21. Ódio, desprezo, preconceito, opressão que as fazem vítimas de violência física e psicológica, por serem mulheres. “Não nascemos mulheres, mas nos tornamos mulheres”, a filósofa e ativista Simone de Beauvoir, relata como todas as mulheres são violentadas ocultamente desde quando são ensinadas a seguir uma definição ideológica pré-estabelecida do que é ser mulher. Como se mulher não fosse ser humano. Uma misoginia fundada no princípio de que mulheres são seres limitados.
A palavra origina-se do grego miseó (ódio) e gyné (mulher), referenciando diretamente o conceito de ódio e a aversão pregada às mulheres. A misoginia se manifesta – em ideias de privilégios exclusivamente masculinos, na exclusão social, na discriminação e objetificação sexual e na agressão física e moral – nas mais variadas faces da sociedade. Tem seu sistema estrutural muito bem infiltrado no que se pode chamar de “violência simbólica”. O sociólogo francês Pierre Bourdieu explica como funciona esse sistema de poder simbólico. Baseia-se em um poder que se enxerga menor ou invisível ao outro, pois não é dada importância a sua existência. Ali está a mulher que cede seus direitos e suas capacidades – de ser humano – por bajulação do “instinto masculino”.
As ciências biológicas e sociais já não creditam a influência do gênero na maneira de ser masculino ou feminino. As características de comportamento são reações secundárias de uma situação. Um pai não costuma chamar a sua filha para ensinar a trocar o pneu do carro, porque isso é coisa de homem. A menina aprende desde cedo a se cuidar como uma princesa para que o príncipe encantando possa gostar dela. A identidade é construída pela cultura que invade o espaço e determina como pessoas e grupos devem ser. A violência simbólica, fundamentada na submissão atribuída ao sexo feminino, ajuda a entender a dominação histórica, cultural e linguística criada para ser tratada como uma diferença de ordem natural e universal.
A mídia, como instituição social e cultural, tem sua contribuição na construção da identidade das pessoas. Tem poder significativo na criação social e subjetiva dos indivíduos, sugerindo como o homem e a mulher devem agir. O problema está na limitação colocada a feminilidade. Os assuntos expostos totalmente definidos para homem ou para mulher.
As revistas femininas de um modo geral, tratam com maestria assuntos ligados a comportamento, moda e beleza. As revistas masculinas ressaltam o status do que é ser homem, ser bem-sucedido, estar por dento dos mais variados assuntos, enfim, ser um “homem de verdade”.
A Playboy é a ‘revista do homem’. Este sofisticado ser que terá acesso a um conteúdo de qualidade, pois a mais nova capa é aquela atriz “gostosa”. A objetificação de tal forma do corpo feminino mostra que pornografia e misoginia configuram-se universos irmãos, pois mesmo as revistas que expõem a nudez masculina não são feitas para as mulheres.
Revistas destinadas ao público feminino, como a Glamour, reforçam a feminilidade dentro dos padrões pré-estabelecidos. Assuntos da mesma classificação podem atribuir futilidade ao conteúdo feminino. Enquanto isso, a revista masculina traz conhecimento científico sobre bebidas e grandes posicionamentos políticos e sociais.
A edição de setembro de 2014 da Playboy é um dos muitos exemplos dos pontos enumerados acima. O exemplar decidiu focar-se no universo da música. Relata lançamentos de livros relacionados a música, entrevistas que apresentam conhecimento sobre workshops de bateria e jazz cubano. Já a Glamour de dezembro de 2016 também pode ser considerada um exemplo do abordado neste texto, agora no viés inverso. A revista enaltece que Justin Bieber ficou “gato” e fez hits que “você vai cantar até semana que vem”.
Outro exemplo comparativo se refere ao exemplar de julho de 2013 da Playboy em relação à publicação de janeiro de 2017 da Glamour. A revista masculina oferece o ‘furacão’ Antonia Fontenelle na capa. No interior da revista os leitores assíduos puderam acompanhar a jornada do repórter em um fórum sobre ufologia; ou como fazer aquela viagem dos sonhos pelas montanhas do Colorado. Para as meninas, Glamour capricha: o tema abordado não poderia ter sido outro que não a descoberta da identidade da namorada do Cauã Reymond e o que ela faz para conseguir tal posto.
Os extremos são nítidos. Há uma dicotomia que não se pode esconder, da qual não se pode fugir. Uma violência simbólica que diz, diária e constantemente, que homens são evoluídos intelectualmente em relação às mulheres. E que tal evolução se revela, principalmente, nos temas de interesse de cada público. Playboy remete a todo um universo de sofisticação e cultura. Afinal, homens devem ser cultos. Ainda na edição de set/2014 há uma entrevista com o artista brasileiro Romero Britto sobre críticos de arte e críticas a seu trabalho. Por outro lado, na referida edição de Glamour de janeiro deste ano, o destaque da revista é uma entrevista em que três musas fitness colocam em pauta como são lindas e o que fazem para se manterem assim.
Seria possível violentar simbolicamente ainda mais uma mulher? Homens querem saber de viagens, carros, negócios, artes e belas mulheres. Já as mulheres? Bem, elas precisam saber, unicamente, como ser belas mulheres. Precisam de exemplos de belas mulheres, precisam de conselhos sobre os gostos masculinos. Precisam aprender a existir para servir, agradar, satisfazer.
Enquanto a Glamour deixa a desejar limitando toda a qualidade extraordinária de determinado indivíduo [mulher], as páginas da Playboy vão dos pecados mais misóginos a um jornalismo impecável.