Superstore: onde a minoria vira maioria
- 16 de novembro de 2022
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- Theillyson Lima
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Curioso! Uma latina protagoniza uma série sobre um supermercado nos Estados Unidos.
Lucas Pazzaglini
Você com certeza já foi a um supermercado e definitivamente é um cliente fiel de um estabelecimento do tipo. A questão é que você entra e sai e a importância do lugar deixa de existir. E se o supermercado se tornasse o ambiente principal e o resto irrelevante? Que histórias poderiam surgir dessa decisão? É dentro desse questionamento que a série “Superstore” tem lugar de fala, uma vez que propõe responder exatamente a essa questão.
“Superstore: uma loja de inconveniências”, na tradução para o português, é uma sitcom (uma serie de comedia situacional) estadunidense que conta a história dos funcionários que trabalham na “Cloud 9”, uma super loja de conveniências, onde você pode encontrar desde um pimentão até uma fonte de jardim, ou um pneu de carro.
Agora que você já conhece a loja vou te apresentar nossa personagem principal: Amy Sosa. Ela é descendente de hondurenhos, nascida e criada nos Estados Unidos, a única personagem latina que ganha destaque em todos os episódios. A série acompanha a sua história dentro do ambiente, um tanto quanto inusitado, de supermercado, uma mistura que vai fazendo sentido a cada episódio que passa.
Onde as minorias estão
A série apresenta um retrato interessante da realidade das minorias nos Estados Unidos e o ambiente de trabalho ao qual estão inseridos. Um supermercado. Uma realidade muitas vezes oprimida pela beleza hollywoodiana, que coloca as minorias no topo de empresas, o que também é uma realidade e deve seguir sendo encorajado sempre, mas não é justo esquecer daquele que está na base da pirâmide social.
Talvez Superstore seja uma das séries estadunidenses que mais reúne minorias em um elenco. No show são apresentados personagens idosos, deficientes físicos, pretos, latinos, asiáticos, gestantes e muitos outros que representam parcelas esquecidas da sociedade.
Por conta disso, uma das falas iniciais da série é a de um personagem principal, branco, que acaba de chegar para trabalhar na loja. Em uma confusão, e sem saber que Amy trabalha no estabelecimento, ele fala o seguinte: “Eu sei, não pareço ser o tipo de pessoa que trabalha aqui”.
Uma fala completamente preconceituosa, dita nos primeiros 5 minutos do primeiro episódio, expressa o que será trabalhado ao longo dos episódios. O pensamento americanizado de que as minorias pertencem a lugares específicos, como, nesse caso, um supermercado.
Por que falar dos latinos?
Dito isso pode sobrar o questionamento: por que falar dos latinos se existem tantas outras minorias para explorar? Porque, por incrível que pareça, a cultura latina sempre é a que está em evidência dentro da série, se para o bem ou para o mal, essa é a realidade. Amy é a que mais tem sua cultura questionada, por ser da comunidade latina e estadunidense de nascença.
Em um episódio específico ela começa a se relacionar com outro latino, um portoriquenho, coisa que ela não está acostumada por sempre ter se relacionado com brancos. Seu par no episódio começa a falar com ela em espanhol e ela se sente envergonhada por não entender boa parte do que ele fala, mas depois acaba explodindo e sua fala exata é: “Eu não entendo o que você diz! Meu espanhol não é tão bom! Meus pais não me faziam falar em casa e não sinto que eu deva me sentir culpada”.
Essa fala retrata a realidade de muitos latinos que estão nos Estados Unidos, que, por vezes, tem sua identidade questionada, ou tem a tendência a se autoquestionar, pela “falta” de uma identificação da sua herança cultural, como, nesse caso, a fala do espanhol. Não existe ninguém com o direito de duvidar da origem de alguém, e tomando a Amy como exemplo, a língua não é sinônimo de cultura.
Prova disso é a festa de 15 anos ou, melhor, “quinceañera”, que ela dá para sua filha. Uma tradição extremamente latina, que carrega traços fortes da cultura hispana, com vestidos bufantes e reuniões familiares, foi organizada, montada e orquestrada por uma latina que não fala espanhol, e não existe problema algum nisso! A série enfatiza a todo momento que, as suas raízes pertencem a você, não existem brechas para interrogatórios.
O papel do branco em Superstore
Ouso dizer que o personagem do branco estadunidense é o mais estereotipado na série, uma doce quebra de regra para quem está cansado de ver o latino escandaloso. Isso porque em meio às minorias, a minoria acaba se tornando o branco, o que permite o espaço para o estereótipo.
Não falo isso da boca para fora. Na série são apresentados três personagens principais brancos: um de mais idade, extremamente religioso, colocado como ingênuo e bobo; uma personagem agressiva, apreciadora de armas e amante da bandeira vermelha e branca. O terceiro é Jonah, o personagem que assume o papel do “aliado”, aquele que rejeita seus privilégios mas nunca vai sentir na pele o que a minoria sente.
Aliás, na tentativa de negar aos seus direitos, ele tenta interferir no de todos oferecendo “ajuda” para resolver problemas, tentando se mostrar “feminista”, “inclusivo” ou até mesmo o melhor amigo que uma minoria pode ter. E talvez ele realmente seja tudo isso, contudo, na maioria das vezes, Jonah é apenas um incômodo, alguém que quer sentir a consciência limpa fazendo o mínimo como uma pessoa no topo da pirâmide social.
Branco x Latino
A história dos personagens de Superstore é construída de uma forma leve, não incitando a militância exagerada e sim a percepção de pluralidade de pensamentos devido às origens distintas. A propriedade para dizer isso surge após analisar a principal relação amorosa da série, Jonah e Amy. Jonah: homem branco, regado de privilégios desde o seu nascimento, acostumado a conseguir o que quer. Amy: mulher latina, herdeira de hondurenhos, aprendeu a lutar pelo que queria e sabe que nem tudo vem fácil.
Mas por que tanta descrição? Porque a construção dos personagens nos ajuda a entender suas atitudes. Amy e Jonah podem ser considerados os líderes das revoluções que acontecem dentro da loja, sempre tentando lutar pelos direitos dos trabalhadores, uma das principais temáticas abordadas dentro da série, mas cada um tem um jeito diferente de lidar com as situações.
Jonah sempre aparece com ideias mirabolantes e sonhadoras, crendo fielmente que assim ele alcançará o resultado desejado, ou, pior, às vezes ele acredita no melhor das pessoas. Mas por que não acreditar? Sua história, quem ele é, permite que ele tenha plena certeza de que “se ele pedir com jeitinho” terá tudo o que quer.
À Amy, por outro lado, nunca foi oferecido o caminho fácil, todas suas conquistas vieram banhadas de muito suor. Na primeira temporada da série nos é revelado que ela trabalha na loja há 10 anos, e após todo esse tempo a melhor posição que conseguiu alcançar foi a de gerente do seu andar. Além disso, Amy tem uma filha, fruto de um relacionamento de Ensino Médio, que acabou se tornando seu casamento, e principal motivo para ter começado a trabalhar na “Cloud 9”.
Me recuso a acreditar que esse plano de fundo oferece oportunidades para a crença de que tudo vai melhorar em um piscar de olhos. Por conta disso existe tanto atrito entre Amy e Jonah, porque um sonha demais e o outro mantém os pés no chão, pensando em resultados palpáveis e reais. A origem sempre vai influenciar na forma que agimos e pensamos.
A falta do estereótipo
A caracterização que Superstore oferece da comunidade latina pode ser considerada como um alívio, porque os estereótipos não são inseridos na personagem latina e sim no pensamento dos brancos para com ela. Ou seja, não nos deparamos com uma latina escandalosa e sim com brancos que acreditam que ela deva ser assim, o que mostra a ignorância e a falta de interesse, em aprender sobre a cultura alheia, enraizada no pensamento desse grupo.
Superstore abre espaço para uma discussão pertinente: quem é o latino sem os estereótipos? E ela mesma responde: alguém que tem força para conquistar seu espaço e lutar pelos seus direitos. A série desmascara o detentor dos estereótipos, no caso o branco estadunidense, e, dessa forma, pauta uma nova realidade para as minorias.
A série oferece um retrato realista através de piadas e um contexto simples. Mostra minorias que batalham por um futuro melhor, apresenta o homem branco que se dá bem por puro privilégio e entende que os latinos são alvo de estereótipos mal formulados e ignorantes. Apenas uma “sitcom” teria a capacidade de trabalhar temas tão complexos de uma forma leve mas, ainda assim, incisiva, real e necessária.