Soft Power: como a própria legislação atrapalha a política de Estado sul-coreana
- 20 de setembro de 2023
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- Theillyson Lima
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Enquanto a estratégia de influenciar pelo entretenimento funciona com maestria, as leis de alistamento levantam questionamentos para o futuro da indústria.
Victor Bernardo
Maior grupo de K-pop da atualidade, o BTS está em recesso, e só deve retomar suas atividades em 2025. Heung Min Son, um dos astros da Premier League, quase precisou paralisar a carreira em 2018. Diversos atores dos famosos Doramas sul-coreanos também são forçados a pausar suas atividades.
Todas essas situações têm algo em comum: o alistamento militar na Coreia do Sul. A sempre presente possibilidade de uma guerra com os vizinhos ao norte torna a legislação bastante rígida, obrigando grandes nomes da indústria cultural a interromperem suas carreiras.
Enquanto o país investe em uma bem-sucedida política de soft power, as próprias leis – que obrigam todos, inclusive os artistas, a cumprirem serviço militar – geram dúvidas sobre o futuro da indústria.
Contexto Histórico
Por séculos, o povo coreano formou uma única nação, com a mesma história, etnia, cultura e idioma. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, a península da Coreia foi dividida entre Estados Unidos e União Soviética, estabelecendo dois governos distintos: Coreia do Sul e Coreia do Norte. Durante os primeiros anos da década de cinquenta, os dois Estados reclamavam o direito sobre todo o território, e um conflito armado se instituiu.
Após três anos de sucessivas invasões e mais de seis milhões de mortos, as duas nações estabeleceram sua fronteira no paralelo 38, assinando um armistício. Esse deveria ser o primeiro passo para um acordo de paz, o que nunca aconteceu.
Hoje, a fronteira entre as Coreias é uma das mais impenetráveis do mundo, fruto de uma guerra que não dispara tiros desde a década de cinquenta, mas que jamais acabou oficialmente.
A nação ao norte, comandada por um regime ditatorial, dificilmente permite que qualquer coisa oriunda de lá chegue ao ocidente. A Coreia do Sul, em contrapartida, se torna cada vez mais uma potência na indústria do entretenimento.
Soft Power
O conceito de soft power foi criado pelo cientista político norte-americano Joseph Nye, e consiste no exercício de influência por meio de aspectos culturais e ideológicos, em contrapartida ao poder bélico ou econômico.
Com incentivos fiscais à indústria cultural e alianças com governos para levar seus produtos a outros países, a Coreia do Sul vem desenvolvendo um grande projeto nesse âmbito.
Na última década, a música pop sul-coreana se tornou um fenômeno de alcance global. Com coreografias envolventes e canções eletrizantes, grupos como BTS e Blackpink quebraram recordes e ganharam alguns dos maiores prêmios da indústria musical.
Em 2020, Parasita se tornou o primeiro longa de “língua estrangeira” a vencer o Oscar de melhor filme. No ano seguinte, a série Squid Game (Round 6) se tornou a atração mais vista da história da Netflix, com mais de 111 milhões de visualizações em menos de um mês de exibição.
A estratégia – além de levar a cultura sul-coreana para o mundo – gera ganhos, principalmente no setor econômico e do turismo, o que influencia indiretamente outras áreas da sociedade.
Depois de um grande incentivo, o país tem uma indústria com potencial de alcance quase incalculável. Mas, o envolvimento em uma guerra que já dura mais de 70 anos e não tem previsão para acabar pode ser um empecilho para alçar voos maiores.
A necessidade do exército
Embora a Guerra da Coréia esteja em um momento no qual batalhas não acontecem efetivamente, ainda existe muita demanda para o exército sul-coreano. Além de incontáveis testes e demonstrações de poderio militar, patrulhar a fronteira mais impenetrável do planeta exige muito das forças armadas coreanas.
A possibilidade de um novo conflito armado também não é descartada, o que torna a legislação de alistamento da Coreia do Sul bastante rígida. Todos os homens precisam se alistar ao completar 18 anos, e cumprir entre dois e três anos de serviço, a depender da área designada.
Claro, existem exceções. Atletas que conquistem medalhas olímpicas, artistas e músicos que vençam premiações internacionais, entre outros grupos, podem ser dispensados por serem consideradas pessoas de “maior prestígio nacional”. Esses critérios, no entanto, não têm sido suficientes para evitar que grandes nomes dessa nova indústria cultural precisem deixar a carreira de lado por alguns anos.
Música, futebol e cinema
Em outubro de 2022, a banda de K-pop BTS anunciou que entrará em recesso até que todo o grupo tenha cumprido o serviço militar obrigatório. Segundo a agência de gerenciamento da banda, todos os membros devem finalizar seu processo de inscrição até o fim de 2023. Com isso, o retorno aos palcos deve acontecer apenas em meados de 2025.
O jogador de futebol Heung Min Son viveu até o último instante a expectativa de ser dispensado. Apesar de já ser um atleta internacionalmente reconhecido, jogando no campeonato mais importante do mundo, ele só obteve a liberação em 2018, após conquistar uma medalha nos Jogos Asiáticos.
Son não é o único caso que chama a atenção no mundo dos esportes. Outros cinco jogadores sul-coreanos que atuam nas principais ligas de futebol do planeta ainda não atingiram a idade de alistamento, e dependem do desempenho em competições internacionais para se livrar da obrigação.
A indústria cinematográfica também sofre com a legislação. Atores como Song Kang (Love Alarm), Nam Joo Hyuk (Twenty Five, Twenty One) e muitos outros, reconhecidos pelos famosos Doramas e outros projetos que globalizam a cultura sul-coreana são obrigados a paralisar suas carreiras para cumprir o serviço militar.
Perguntas sem resposta
Por quanto tempo um fã consegue permanecer fiel sem nenhuma manifestação do seu ídolo? O BTS, grupo mais famoso do K-pop, provavelmente não encontrará problemas para retornar. Bandas menos conhecidas podem não ter a mesma sorte, e talentos certamente serão perdidos.
Quantos clubes estarão dispostos a contar com um jogador que passou anos fora do futebol? Em uma indústria que se move tão rápido, o menor período fora de ação já é uma eternidade, e pode significar o fim de carreiras promissoras. Isso sem contar os riscos de lesões e ferimentos em um ambiente tão violento como o militar. Para esportistas, voltar ao mais alto nível de competição será muito difícil.
Quantas oportunidades um ator vai encontrar depois de passar três anos fora da indústria? O quão traumático pode ser passar anos em um treinamento militar? Essas e outras perguntas seguem sem resposta, nos permitindo apenas supor os resultados do alistamento desses artistas. Mas, depois de fazer tanto para transformar sua indústria cultural em uma potência global, é de se espantar que a Coreia do Sul não se esforce um pouco mais para manter seus principais nomes em ação.
Para aproveitar ao máximo um potencial incalculável de soft power, o país precisa rever algumas políticas de Estado. Obrigar toda a população a participar de uma guerra que está em “trégua” há 70 anos não parece ser a melhor opção.