Seriam os obituários sensacionalistas ou apenas uma vitrine da realidade?
- 11 de outubro de 2023
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Debate
- 0
Um debate sobre a relevância de assuntos sensíveis em obituários.
Ana Júlia Alem
“Morre Rita Lee: relembre curiosidades, dos óvnis às drogas”, “Aracy Balabanian: atriz já fez aborto e não quis se casar” – texto publicado pela Folha de São Paulo após a morte da atriz brasileira – e “Sinéad O’Connor foi casada por 18 dias que terminou por maconha”. Esses são alguns exemplos de obituários publicados por portais de notícias brasileiros. Há quem diga que eles são sensacionalistas e insensíveis, mas será mesmo? Ou será que eles apenas transmitem a realidade?
Segundo os Cartórios de Registros Civis, em 2022, o Brasil registrou cerca de 1,47 milhão de óbitos pelos mais variados motivos, desde Covid-19 até doenças pneumológicas. Esse relatório mostra que a morte está presente no cotidiano da maioria das pessoas, seja pela perda de pessoas próximas ou famosos nunca vistos pessoalmente. Nos noticiários, ela está presente quase que diariamente. Jornais sérios ou sensacionalistas. Não há quem fique de fora durante um anúncio de morte. Neste texto, vamos discutir a relevância de abordar, em obituários, os tópicos sensíveis, complicados – e escondidos – da vida dos falecidos.
A famosa liberdade de expressão e imprensa
A liberdade de expressão se refere ao direito de expressar opiniões e pensamentos sem a intervenção ou censura governamental. Essa ideia de proteção deriva dos Estados Unidos da América, que deixou explícito em sua Primeira Emenda da Constituição, que proíbe qualquer tipo de censura, tanto à liberdade de imprensa quanto à de expressão.
No Brasil, a liberdade de expressão é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988. Segundo ela, a liberdade de expressão abrange manifestações, como a liberdade de pensamento, opinião, imprensa, acadêmica e outras formas de expressão individual ou coletiva. Ela tem como finalidade garantir um ambiente democrático em que as pessoas possam se pronunciar livremente, além de contribuir para o debate público, o pluralismo de ideias e o desenvolvimento da sociedade.
Isto posto, vamos ao nosso ponto. A principal função de um jornalista é agir em benefício da sociedade. Ele é quem fornece as informações, fatos e verdades necessárias para a comunidade, a fim de que ela possa compreender as informações e tirar suas próprias conclusões. Cabe a nós, jornalistas, denunciar os fatos, as irregularidades e injustiças que nem sempre estão às claras. Para exercer parte de sua função profissional, o comunicador tende a contrariar interesses, seja de figuras importantes da sociedade, empresas ou governantes. Neste caso, cabe – e é dever – do profissional denunciar os fatos e detalhes de interesse público da vida do falecido no obituário, independente do que seja.
As consequências da vida pública
Pessoas públicas são aquelas que se dedicam à vida pública e cujo trabalho reúne pessoas em atividades em comum, como é o caso de políticos, artistas, atletas, pesquisadores, celebridades e, atualmente, influenciadores digitais. A matéria publicada pela Folha de São Paulo sobre a Aracy Balabanian, por exemplo, conta que a atriz realizou dois abortos ao longo de sua vida e que, dentro de sua carreira, não havia espaço para filhos. Após a publicação, muitas pessoas julgaram o veículo por reduzir a carreira dela à essa atitude.
É claro que essa matéria teve, sim, o objetivo de conquistar algumas visualizações, porém, esse não foi o único texto publicado. O próprio portal publicou o obituário da atriz e, nele, apresentou a longa história de conquista de Aracy. A questão que fica é: o portal deveria ter publicado? Na minha opinião, deveria, já que esse não era um fato que Aracy escondia de seu público, até porque essa informação havia sido publicada em sua biografia.
É completamente normal se expor ao mundo, sendo uma pessoa pública ou não. Todos nós dividimos detalhes pessoais de nossas vidas com nossos conhecidos – talvez até desconhecidos, pelas redes sociais. No caso de celebridades ou subcelebridades, é ainda mais comum, já que elas compartilham muito de diferentes áreas de sua vida.
A fama pode trazer dinheiro e ter muitos privilégios, mas ser uma figura pública nem sempre é fácil e, com ela, surgem algumas consequências. Segundo a revista Forbes Brasil, as consequências são a perda de privacidade, exposição às críticas e o medo de perder a fama conquistada.
Você deve estar se perguntando de que forma isso se relaciona com os obituários publicados pelos veículos informativos, não é? Vamos lá, não sejamos ingênuos. Quando uma pessoa entra nesse mundo de holofotes, ela certamente sabe sobre as consequências de estar no centro das atenções. Ou seja, uma pessoa pública tem sua vida exposta o tempo todo, tornando completamente normal que os noticiários compartilhem e divulguem os fatos mais marcantes relacionados à vida da figura.
Caça-cliques
Não é segredo para ninguém que, para se manter de pé e estável, os veículos informativos precisam contabilizar um alto volume de cliques e visualizações. O engajamento sustenta a mídia. Não só sustenta os veículos midiáticos, como também mantém as figuras públicas de um país. Sem a visibilidade na mídia, ninguém continua sendo uma “celebridade”. Ou seja, eles se codependem mutuamente. Da mesma maneira que a mídia precisa dos cliques para sobreviver, certas figuras públicas precisam dos veículos para se manterem e, que mal há nisso?
Um exemplo recente disso foi o término da cantora brasileira Luísa Sonza com Chico Moedas. Não se engane, não estou dizendo que tudo foi um truque de marketing. Porém, não quer dizer que o caso não tenha sido utilizado como uma maneira de se sobressair na mídia. Os veículos aproveitaram para conquistar inúmeros acessos em seus sites e redes sociais e a cantora utilizou de sua aparição no Mais Você, programa da Rede Globo apresentado por Ana Maria Braga, para revelar o motivo do término e ainda divulgar seu mais recente álbum.
Viu? A relação é uma dependência mútua e, no caso de notícias de falecimento de uma figura pública, é perfeitamente comum que os veículos jornalísticos denunciem todos os aspectos da vida dessa pessoa, inclusive os tópicos mais sensíveis e complicados. Até porque…
Morreu virou santo?
A morte não anula as atitudes realizadas pelo indivíduo e é dever da mídia denunciar as atitudes que sejam de interesse público. Até porque, dependendo do número de pessoas que acompanham tal figura, o tamanho da influência que ela tem sobre a sua comunidade aumenta. Então, a depender das atitudes tomadas pelo famoso, é possível que outras pessoas sigam o exemplo dado. Por isso, é fundamental que essas atitudes sejam enumeradas a fim de que as pessoas entendam a problemática por trás delas.
Um claro exemplo disso é o do papa emérito Bento XVI, falecido em dezembro de 2022. Durante seu papado, ele afirmava ser “tolerância zero” para abusos sexuais cometidos por clérigos, porém, seu discurso foi ofuscado pelas acusações de encobrir pedófilos quando era arcebispo na Alemanha. Segundo o relatório, Joseph Ratzinger, antes de se tornar o papa Bento XVI, não tomou nenhuma providência para afastar quatro clérigos acusados por abusos sexuais contra menores, sendo dois desses casos, comprovados por tribunais. Na verdade, os abusadores continuaram ativos no cuidado pastoral.
Após os escândalos, o papa emérito expressou sua comoção e vergonha, além de oferecer sua proximidade e oração pelas vítimas. Joseph era uma figura pública. As informações sobre ele eram – e pode-se dizer que ainda são – de interesse público. Suas atitudes deveriam ser acobertadas, assim como ele fez? A resposta é bem clara: não deveriam. Não podemos defender suas atitudes por conta de seu falecimento. É preciso denunciar e comunicar isso à sociedade, porque essas atitudes fizeram parte de sua vida. Não há como esconder. O antigo papa morreu, mas não podemos dizer que virou santo.
E agora?
No fim das contas, não importa se as motivações são caçar-cliques ou aparecer na mídia, todas as atitudes têm suas consequências. Para os veículos midiáticos, pode ser a perda parcial de credibilidade. Para as figuras públicas – ou não – a perda da privacidade. Cabe a cada um deles decidir o que compensa mais a longo prazo.