Respeito póstumo
- 11 de outubro de 2023
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- Theillyson Lima
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Um debate sobre a ética jornalística diante das notícias de morte.
Sâmilla Oliveira
A morte de figuras públicas costuma gerar uma avalanche de cobertura jornalística. Junto às homenagens e memórias, surgem também os ecos de controvérsias e críticas. É válido questionar: qual é a abordagem ética ao falar de alguém que acaba de partir? Depois que a poeira abaixa, somos lembrados de como a imprensa lida com esses momentos. Será que estamos trilhando o caminho certo ao abordar a vida dessas personalidades após sua partida? Este texto traz um olhar especial para a forma como os portais de notícia tratam a história de quem foi e o luto de quem fica.
Assim como em toda profissão, o jornalismo também tem um código de ética a ser seguido. Infelizmente, ele é encarado mais como sugestão de conduta do que como qualquer tipo de mandamento que deve ser levado a sério. Ele é claro quanto ao cuidado com a dignidade humana, a verdade e o sensacionalismo. Mas por que algumas vezes a imprensa resgata polêmicas no imediato luto de uma celebridade? Seria este o momento adequado para tais abordagens?
A responsabilidade de um jornalista é com a verdade e com a sensibilidade. Quem escreve é tão humano quanto quem lê (na maioria das vezes). Quando uma figura pública falece, é compreensível que se faça um panorama de sua vida. No entanto, há um tempo e um espaço para cada tipo de informação. O momento logo após o falecimento não parece ser o mais apropriado para focar em controvérsias. É uma questão de humanidade.
Antes de mergulharmos nesse mar tempestuoso, vamos fazer uma pausa e lembrar de figuras icônicas que se foram. Rita Lee, com sua trajetória de revolução musical, não foi apenas uma artista. Ela foi um fenômeno cultural, um símbolo de uma era. Da mesma forma, Kobe Bryant não foi só um jogador de basquete. Foi uma inspiração mundial. Aracy Balabanian, com suas participações marcantes nas telinhas, fez parte do cotidiano de incontáveis brasileiros que até se sentiam amigos de tanto que a viam na TV. Quando falamos deles lembramos de legados, de famílias que ficam e de fãs que choram.
Do poder das palavras
O código que guia a profissão de um jornalista destaca a importância do respeito à dor e à privacidade. Focar em polêmicas em um momento de luto não honra esse princípio. A mídia, com seu amplo alcance, tem o poder de influenciar percepções. A imprensa tem sim o poder de moldar a forma como a sociedade percebe e recorda um indivíduo.
No mundo real do jornalismo, onde a informação corre a uma velocidade assustadora, precisamos ser ainda mais cuidadosos e éticos. Ao relatar sobre a vida de quem já se foi, é indispensável perceber o impacto das palavras. Palavras constroem ou destroem. E o verdadeiro desafio de quem escreve é equilibrar a busca pela verdade com a humanidade.
Não se engane, não estou incentivando a prática da famosa expressão “passar pano”, que significa acobertar ou omitir algo ruim sobre alguém. Não se trata de apagar as falhas ou controvérsias de uma personalidade. A história deve ser contada em sua totalidade – quando existir um gancho que aclame essa história. O período logo após a morte de alguém não é o momento ideal para dar palco às suas falhas.
Escrever com sensibilidade e respeito honra a memória do falecido e acolhe a dor de filhos, esposas, netos, irmãos e amigos enlutados. A mídia tem o poder de moldar narrativas. E em um mundo dominado por manchetes rápidas e ciclos de notícias intermináveis, é preciso que sejam feitas escolhas cirúrgicas sobre como as histórias são contadas.
Do direito à privacidade
Ser figura pública não o torna, ou não deveria o tornar, uma feira de peixe aberta para a cidade inteira visitar, colocar o dedo e cheirar. É a lógica absoluta: respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão. Escrevo com indignação: por que bulhufas aparecer na TV ou internet é sinônimo de ser de domínio público como um livro antigo?
O código aponta: “A produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público”. Nunca vi ninguém perder algum parente e sua primeira reação ser o interesse pelos “podres” dele. Se ainda existir humanidade neste mundo, clamo por ela agora.
Repito que não se trata de acobertar erros. E ainda que fosse, depois de morto, como punir um ser humano pelo erro, pecado ou crime que seja? Do que adianta tantos parágrafos de críticas se nada jamais poderá ser resolvido ou remediado? Sem contar que quem lê não tem nada a ver com isso. Imagina que deplorável chegar ao nível de estar tão sem assunto que é preciso contar os pecados alheios.
Da dignidade humana
É fácil encontrar diretrizes que lembram a responsabilidade de respeitar a dor e a privacidade em qualquer profissão. Afinal, por que destacar polêmicas em detrimento de um legado gigantesco? O código de ética dos jornalistas estabelece que o respeito à dignidade humana é um dos pilares da prática profissional. Ele ainda menciona “respeitar os direitos do cidadão” e “o direito à informação, à liberdade de expressão e de crítica” e ressalta a importância de tratar todos os assuntos, incluindo a morte, com a devida sensibilidade.
Focar em polêmicas ou críticas relacionadas à pessoa falecida neste momento não só desvia a atenção do que é realmente importante (a informação), como pode causar dor adicional aos entes queridos que já estão sofrendo demais. Para quê lembrar de um erro cometido a tanto tempo por quem já nem existe mais? Escrever sobre isso não tem um objetivo claro senão a promoção do próprio portal de notícias.
Ao escrever sobre a biografia de alguém, os que praticam o jornalismo têm a oportunidade, e diria até a responsabilidade, de respeitar o luto e celebrar a vida, os legados e as contribuições em vez de se concentrar em polêmicas e furos desnecessários. Escrever por escrever ou escrever por maldade só acentua o descaso com a ética e com a sensibilidade dos aparentes robôs por trás das teclas.