Realidade enferma: sobre dominação, distorção e autonomia
- 22 de setembro de 2015
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- Thamires Mattos
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Andréia Moura
“Você pensa isto mesmo ou é assim que eles querem que você pense”? (V de Vingança)
O início do século passado trouxe também as primeiras tentativas de explicar os efeitos dos meios de comunicação sobre a “massa”. Harold Laswell e Paul Lazarsfeld, embasados em conceitos psico-comporamentais, desenvolveram um pensamento teórico voltado ao tema a que chamaram de Teoria Hipodérmica. O modelo dos norte-americanos creditava aos media um poder absoluto. O jornalista Ivan Oliveira, mestre em Comunicação Social pela Umesp e professor da Universidade Federal do Amapá, explica que Laswell e Lazarsfeld viam “a mídia como uma agulha que injetava seus conteúdos no receptor sem qualquer tipo de barreira, criando um estímulo que provocava uma resposta imediata e positiva por parte dos receptores, vistos como atomizados e idiotizados”.
Laswell e Lazarsfeld foram motivados por observações feitas quanto ao uso da propaganda política em regimes totalitários e por um fenomeno mais polêmico ainda. A transmissão radiofônica (em formato de dramaturgia) feita por Orson Welles do livro A Guerra dos Mundos. O romande narra uma invasão alienígena no planeta. A empreitada de Welles, procurou contar a história da obra em formato de cobertura jornalística. Com repórteres, entrevistas, depoimentos, etc. A CBS, canal que transmitiu o evento, calculou depois, que o programa alcançou 6 milhões de pessoas. A maioria dos ouvintes acreditou que aquilo era real, que alienígenas realmente estavam invadindo os EUA. O programa de Welles foi capaz de paralisar 3 cidades e criar uma espécie de caos, pânico generalizado. Oliveira comenta que o efeito criado pela mídia na ocasião concenveu os pesquisadores de que ela era absoluta em relação aos receptores. “A audiência passou a ser vista como uma massa amorfa, que apenas respondia, passivamente, aos estímulos dos meios de comunicação”, acrescenta.
A influência das pesquisas de Laswell e Lazarsfeld a respeito da comunicação de massa foi tão grande que até hoje ainda conserva-se, no imaginário popular, a idéia de que a mídia manda e desmanda, que ela pode tudo. O pensamento dos norte-americanos também contribuiu para o surgimento de um subgênero da ficção científica: a distopia. “O termo é utilizado, normalmente, para indicar uma sociedade em que se perdeu a esperança de futuro, especialmente de futuro melhor. É uma oposição a palavra utopia”, explica Tales Tomaz, jornalista e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Utopia, conceito criado por Thomas More (em livro homônimo), alude a um lugar idealizado onde liberdade, ordem, e autonomia são incentivados e cultivados. Tomaz enfatiza que quando esta sociedade não se realiza, quando as pessoas percebem que as promessas de equilíbrio e felicidade feitas no passado não se realizarão, e que o inverso a elas é que aconteceu, é a realidade distópica em andamento.
Vanderlei Dorneles, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela USP, afirma que nossa realidade é distópica. “A utopia é ficção, mas a sociedade real é distópica, com controles sobre os indivíduos. Controles perpetrados pelo governo, pelo capital ou pelos meios”. Para ele, não há sociedade ideal, mas sociedade real. Uma sociedade que se consuma por meio de aspectos malévolos. Literatura e cinema se dedicaram, no último século, a produzir obras distópicas. Com obvios fins de criticar esta realidade “enferma” (a distorção da utopia) por meio de exageros. “1984” de George Orwell, “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, “Neuromancer” de William Gibson, “Matrix” dos irmãos Wachowski, “V de Vingança” de Allan Moore, “Divergente” de Verônica Roth e o holywoodiano “Jogos Vorazes” de Suzanne Collins, são exemplos do gênero. Em todas as obras a tônica é a mesma: “um sentimento de que as coisas estão piorando e que não há perspectiva de melhora”, enfatiza Tomaz. Este é o sentimento distópico.
“Estamos presos ao modelo, somos parte dele.” (V de Vingança)
Na Teoria hipodérmica, e por tabela, nas distopias, a mídia tem papel primordial. Laswell e Lazarsfeld acreditavam que a função dos meios era manter a ordem, equilibrar a sociedade. “Eles seriam substitutos da família, da tradição e teriam papel estruturador”, argumenta Dorneles. Na distopia os meios, obviamente, assumiriam características mais distorcidas, doentias. Serviriam ao propósito de alienar, mediocrizar, dominar e manter o status quo. Tomaz explica que uma das importantes funções dos media, na vertente teórica em questão, seria a de reforço das normas sociais. “A mídia forçaria as pessoas a tomarem posições em relação a temas sociais”, diz. Fora da mídia, o assunto não obrigaria a posições definitivas, mas quando levantados por meio das mídias tais temas exigiriam posições claras dos indivíduos. E a mais nociva de todas as funções midiáticas seria a de narcotizar. A isto os pesquisadores norte-americanos chamaram de “disfunção narcotizante”. “Neste caso, a mídia exerce o efeito de uma droga. Fazendo com que o indivíduo perca o contato com a realidade, se torne uma espécie de zumbi”, explica Tomaz.
A pior ditatura não é a que aprisiona o homem pela força, mas sim pela fraqueza fazendo-o refém das próprias necessidades (V de Vingança)
A audiência se torna passiva, apática, alienada, emburrecida. Os discursos repetidos, o excesso de informação, o entretenimento vulgarizado produziriam uma espécie de extase, de alucinação muito parecida ao efeito de uma droga. O expectador é condicionado, escravizado e dominado pelas próprias necessidades, medos, desejos. O recurso da apatia e alienação foi muito utilizado por sistemas totalitários em suas propagandas políticas. O nazismo é um caso clássico. “O princípio básico de Goebbels era unir propaganda e diversão de modo que o receptor não conseguisse diferenciar um do outro”, enfatiza Oliveira. Entretenimento e ideologia tão imiscuidos que a audiência nem percebe que se tornou pseudopensante.
O que é real? Como você define o ‘real’? (Matrix)
Tampouco consegue diferenciar verdade e mentira, realidade e ficção. Vive exposto às mídias de tal forma que passa a comportar-se dentro de concepções ilusórias e a considerar a simulação a única realidade viável. Oliveira explica que para Laswell e Lazarsfeld “os indivíduos eram átomos isolados com pouca influência dos grupos sociais, altamente manipulados pela mídia”. Para Tomaz os conceitos explorados pelos pesquisadores já não se encaixam na realidade contemporânea. “É evidente que as pessoas tem muito mais autonomia em relação a mídia do que o conceito da agulha hipodérmica havia previsto”, afirma. E a passividade ainda existe? “Não totalmente, mas em muitos momentos ocorre ainda essa passividade”, declara Tomaz. Neste caso, segundo Oliveira, a situação é contextual, muito específica. “Há situações em que o contexto geral favorece que a mídia funcione como agulha”, esclarece. Dorneles concorda quando enfatiza que os conceitos da Teoria Hipodérmica tem aplicatibilidade hoje, ainda que em casos muito particulares.
Você precisa entender, a maioria destas pessoas não está preparada para despertar. E muitas delas estão tão inertes, tão desesperadamente dependentes do sistema, que irão lutar para protegê-lo. (Matrix)
Laswell e Lazarsfeld, já no início do século passado perceberam que estes mecanismos (gerenciadores do capital e do social) passaram a exercer seu poder sem intimidação ou coerção, mas pela persuasão massiva perpetrada pelos meios. Ainda que não totalmente passivo à atuação da mídia o homem pós-moderno continua preso a estes mecanismos de dominação. Uma dominação que se concretiza pela atuação midiatica. Padronizando comportamentos, criando entretenimento alienante, narcotizando. Há resistência? Certamente. Ponto já defendido pelos jornalistas citados. Mas esta resistência é muito desproporcional frente ao número de temas em que a mídia ainda consegue se impor. As pessoas se rendem por comodismo, por segurança, por pertinência e por medo de uma vida que se afaste do sistema. Ainda que os conceitos da Teoria Hipodérmica não se apliquem completamente ao processo comunicativo atual, “muitas pessoas, sob estímulos midiáticos ou outros de qualquer natureza, não conseguem pensar por si mesmas. Essa porcentagem da sociedade sempre dependerá de que alguém tome decisão por ela”, esclarece Dorneles. Por outro lado, para Tomaz, surge na comtemporaneidade um outro grupo de pessoas. Passivas de outra maneira. Aquelas que recebem a mensagem dos meios, entendem, mas por razões ainda incompreendidas decide que não vale a pena agir em nenhuma direção. “Eu não chamaria isto de passividade, pelo contrário, chamaria de autonomia”.
Este é o ponto. Seria possível quebrar com o ciclo de alienação, dominação, narcotização produzido pelos meios? Que tipo de revolução venceria a realidade distópica sem incorrer no perigo de fazer do “levante” sistema? Autonomia. A autonomia, aos moldes explicados por Tomaz, libertaria os indivíduos de um comodismo alienado e do medo da exclusão.
Então vc não tem mais medo? Está completamente livre. (V de Vingança)