Proprietários?
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
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Eu adoro pizza, macarrão, burrito, tofu e ramén. O pior é que costumo comer pizza de chocolate, macarrão com milho e ketchup, burrito com carne de soja, tofu na torta, ramén com molho barbecue. Adoro um jazz e escuto alternando com reggae, musica latina, folk-indie, fado português e K-pop coreano. Sou mestiça, – nem branca, nem preta -, com ascendência portuguesa, espanhola, indígena e africana. Uso turbante quando o cabelo está ruim (e as vezes pra me exibir mesmo), tenho batas indianas maravilhosas e peças indígenas feitas com lã de alpaca para usar no inverno. Assisto novelas mexicanas, dramas orientais, filmes independentes europeus e asiáticos, blockbusters norte-americanos. Não consigo imaginar como seria possível ser “eu” sem que tivesse me aproveitado desavergonhadamente de todos estas influências culturais. Sem que as tivesse incorporado em minha rotina diária. Sem que tivesse feito de cada uma delas uma expressão de minha própria essência. Sem que as deixassem moldar meu mundo e minha visão das pessoas e do mundo.
Isto é apropriação cultural? Não, definitivamente não estamos falando disto. Acho que o ponto principal ao tratar do tema é localizar tanto conceitos quanto comportamentos que podem, de fato, ser relacionados à questão. O que é cultura? O que é identidade cultural? O que ambas tem a ver com globalização e multiculturalismo? Onde entra opressão, segregação, desvalorização, esvaziamento, apropriação? Sigamos por partes.
A cultura é este tecido, sempre inacabado, mutante, dinâmico. Tecido em que nos inserimos, individual e etnicamente, como fios. Local onde nos tornamos indivíduos e grupo ligando-nos em um bordado que se desenha baseando-se em similaridades físicas, em hábitos e tradições que se constroem em função do ambiente e dos recursos naturais que nos cercam. Por sua vez, identidade cultural é esta percepção que temos de pertencer a um grupo específico de fios que se uniu ao redor de uma língua, artes, religião, festas, mecanismos de trabalho. Nossa identidade se alimenta das interações regionais e de outras mais universais, do tempo e do espaço.
Em tempos passados, onde as fronteiras territoriais e culturais eram muito mais nítidas, até rígidas, esta identidade era mais outorgada que construída. Na contemporaneidade, fruto do avanço tecnológico, capitalista e dos conflitos territoriais, o trânsito de informações e de pessoas modifica impreterivelmente os mapas culturais. Mapas que se tornam tão flexíveis quanto os indivíduos, transformando esta “identidade” em algo bastante abstrato. A época dos impérios expansionistas da antiguidade, seguindo-se às grandes navegações e a empreitada colonialista, representam o que podemos chamar tentativas de dominação cultural. Nestes contextos (que predominam em medidas diferentes até hoje) a cultura dominante (a conquistadora) impunha seus comportamentos e tradições a uma minoria cultural submetida pela guerra ou conquista territorial. Esta dominação e imposição segregou grupos e ensinou uma postura de desprezo às identidades culturais minoritárias. E é desta segregação que nasce o que podemos chamar de APROPRIAÇÃO.
Apropriar-se é retomar, fazer ressurgir, práticas bastante específicas dentro de grupos culturalmente minoritários e torná-las (repentinamente) aceitáveis, comerciais. Fazer delas objeto de desejo e consumo, conceder-lhes status de padrão, quando em um passado historicamente conhecido tais práticas foram segregadas. É resgatar esta identidade (tradições religiosas, costumes ditados pela relação de determinada etnia com o entorno ambiental, manifestações artísticas que representam social e politicamente um grupo) esvaziando este símbolo de seu verdadeiro significado. Banalizando, até vulgarizando. Retirando-lhe seu poder contestatório e sua asserção de afirmativa cultural.
Somos proprietários de nossas culturas, de nossa identidade cultural? De forma alguma. Somos filhos de um processo dinâmico de troca e transformação. E, como brasileiros, somos o retrato corporificado do conceito de multiculturalismo, de intercâmbio e transformação, de ressignificação cultural. Alguns dos textos desta edição enfatizaram a importância desta compreensão. Concordo, com ressalvas. É preciso entender que este tipo de intercâmbio e mestiçagem é valido e enriquecedor apenas quando o “apropriar-me” não é feito sem a devida reflexão histórica exigida. Quando o “apropriar-se” reconhece o menosprezo do passado histórico e abraça a prática com fins de devolver-lhe ou tributar-lhe seu devido valor cultural.
Um dos textos de nossa edição enfatizou a importância de lembrar que o ocidentalismo do qual somos herdeiros foi um processo extenso, dolorido e rico (ao mesmo tempo) de dominação/apropriação protagonizado por duas das grandes culturas da antiguidade. Esta é a história do mundo. Uma história de choque e transformação cultural. De apropriação indébita, de menosprezo e segregação. Somos mundo, indivíduos e grupo por que estas coisas aconteceram e ainda acontecem. Só somos homens por este constante dinamismo que nos permite aprender, mudar, aceitar e evoluir. Isto não nos desresponsabiliza quanto aos danos identitários culturalmente infligidos. Nem nos desobriga de nossa dívida histórica em relação aos grupos violados.
Nosso respeito e reconhecimento se demonstra quando, ao nos apossarmos destas práticas, o fazemos com consciência, apreciação, engajamento. Nossa própria posse só deve ser desejada e feita por ser reflexo de engajamento e apreciação das práticas alheias. Quando como um burrito, cheio de carne de soja, faço porque aprecio a beleza da cultura e comida mexicana. Me identifico com a história do povo, a origem das receitas, e ainda que as reinvente em terras tupiniquins, esta reinvenção é um tributo a riqueza daquilo que aprendi com o outro. Quando escuto jazz ou uso um turbante, faço com consciência histórica e engajamento social. Faço por entender o significado do artefato e o papel das estruturas melódicas. Quando reinvento os sabores da Ásia faço pelo intenso interesse desenvolvido pelas tradições e comportamentos sociais e religiosos daqueles povos ainda misteriosos.
Fanatismo e ódio não devem ser estimulados. Houve e há opressão e segregação. Mas não confundamos as coisas. Apropriação não é racismo, embora possa revestir-se desta capa. Nem todo branco que usa turbante é alienado quanto à luta negra. Nem todo ocidental que usa o terceiro olho ou roupas indianas é alheio às filosofias daquela cultura. As vezes, a apropriação acontece em função de profundo conhecimento. Somos proprietários de nossa consciência, de nossa percepção histórica, do reconhecimento da herança histórica, de nosso comportamento de respeito e apreciação. Nunca da cultura. Mas nossa postura em relação à cultura e às identidades culturais é fruto de todas estas nossas outras propriedades.
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Andréia Moura, editora-chefe do Canal da Imprensa