Órfãos do Estado: quem é que nos protege?
- 2 de junho de 2021
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Em três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país
Thainá Reis
Quando escrevo a história do Brasil, reescrevo marcas de um passado violento, um Brasil que sofreu (e sofre) ditaduras. A ordem e o regresso desandam entre linhas, o tiro que saiu pela culatra matou na semana passada 25 pessoas na favela do Jacarezinho.
Nas páginas deste livro de histórias, você encontra sangue de inocentes que são mortos diariamente pela guerra do tráfico. As operações são cruéis e travam uma batalha que nenhuma pessoa é apta para trilhar de olhos fechados. A faca na caveira não é um ditado, e sim, uma consequência para aqueles que cruzarem o caminho de quem impõe ordem dentro dos morros cariocas.
São Gonçalo, 25° graus. Duda, Matheus e João jogavam sinuca e conversavam, numa tentativa de se distraírem do calor do Rio. O taco escorrega e bate na bola errada. As gargalhadas não incomodaram Matheus, que já se preparava para o próximo movimento. Concentrado e pronto para acertar o canto da mesa de bilhar, ele é interrompido. A atenção de todos volta-se para o céu, e a sombra escura que sobrevoava os ares daquele morro, só poderia significar uma coisa: PM na área.
Rapidamente, as crianças correram para suas casas em busca de proteção. Em meio a correria, eles tentam trancar a porta e se escondem atrás dos móveis. Estavam encurralados. Ouviam-se gritos lá fora, e dentro da casa, os sons de suspiros ofegantes se misturavam com o grunhido baixinho de Duda. Era o medo do que estava por vir se apossando da casa.
-Pá, pá, pá, pá!- As balas atingiram as janelas e os estilhaços de vidro voaram por toda parte.
O procedimento era padrão. Matheus já estava deitado no chão, com a mão na cabeça e o coração na boca. Desesperado, ele gritava:- “Só tem criança, aqui! Só tem criança, aqui!” Mas era tarde demais. A polícia havia acabado de lançar duas granadas no meio da sala de estar. Os gritos pelo cessar-fogo não interromperam o chicotear das balas, mas em meio a tanto barulho, uma voz gritou mais alto. Era a dor de João. Baleado nas costas, o menino agonizava enquanto seu sangue se espalhava pelo chão.
O tiro que matou o adolescente João Pedro, de 14 anos, durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, entrou pelas costas e ficou alojado perto do ombro. A operação terminou sem presos e destruiu uma família inteira.
O vilão que tá na história ou aquele do jornal?
Histórias como essa, infelizmente, não são de um livro. São manchetes e títulos de reportagem do Portal G1. A cobertura jornalística foi minuciosamente acompanhada, e ao todo, foram produzidas mais de 5 reportagens especiais sobre a investigação e os desdobramentos do caso de João. Mas, depois de um ano, ainda seguimos sem respostas.
João Pedro não foi o primeiro e nem será o último, com certeza você já deve ter ouvido histórias semelhantes. Ágatha tinha 8, Kauê 12 e Kauan 11. Dentro da própria casa, ou fora dela, eles foram mortos por quem vestia uma farda que devia oferecer proteção. Como explicar para uma criança que a segurança também dá medo?
A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. No Brasil morre um preto a cada vinte e três minutos. Me questiono, quando a cor da pele vai deixar de influenciar na expectativa de vida das pessoas? São muitas as perguntas, e pouca é a paz.
A casa de João não ficou marcada com quatro ou cinco tiros na parede. Foram mais de 70 buracos. Mas a imprudência não para por aí. O pai e a tia de João Pedro trabalhavam ali perto e correram quando ouviram os tiros. A família diz que foi impedida de entrar na própria casa enquanto os policiais estavam lá dentro.
O corpo do menino foi levado. Policiais alegam que fizeram a remoção de helicóptero para o socorrer mais rápido e que ele morreu durante o trajeto.
Parentes passaram a noite procurando o adolescente em hospitais e só acharam o corpo 17 horas depois, no Instituto Médico-Legal do Tribobó.
O delegado responsável pela ação recolheu o testemunho dos policiais envolvidos. Eles justificaram que o tiroteio começou porque traficantes haviam invadido a casa em que o menino estava. O traficante em questão não foi encontrado e ninguém foi preso.
“Se a lei fosse cobrar quem rouba e mata, a cadeia tava lotada de terno e gravata”.
– Nego Max.