One Piece: navegando nos mares das críticas sociais
- 20 de setembro de 2023
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- Theillyson Lima
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Política, conflitos e preconceitos, A animação que educa gerações através de suas histórias.
Natália Goes
Crítica ao governo, a busca pelos sonhos e uma adaptação muito aguardada. One Piece, o mangá do “pirata que estica”, publicado desde 1997, é o mais vendido de toda a história, virou anime em 1999 e ocorre há 24 anos sem interrupção. Neste ano, virou live-action em uma série da Netflix. O responsável pela escrita do mangá é Eiichiro Oda e pela animação é a Toei Animation, produtora de animes.
One Piece conta com diversas sagas, arcos e mais de mil episódios/edições. No mangá e no anime acompanhamos a história de um bando de piratas liderados pelo Monkey D. Luffy, um jovem pirata que possui o corpo de borracha após comer a Fruta do Demônio quando era criança, chamada de Akuma No Mi, a Gomu Gomu No Mi (Fruta da Borracha).
Seu grande sonho é tornar-se o rei dos piratas, mas para conseguir o título ele está em busca do tesouro One Piece, o mais procurado do mundo, tesouro esse que dá nome à obra e foi deixado e anunciado pelo rei dos piratas Gol D. Roger antes de sua execução.
A busca pelo tesouro dá início a uma nova era de piratas. A narrativa do anime muda ao longo da história, começa com um tom infantil e vai evoluindo para o juvenil. Apesar de que em algumas vezes pareça que vai caminhar para um lado sombrio, acaba não indo.
O anime baseia-se no mangá e devido a fama que obteve, Oda tem poder de decisão sobre as produções audiovisuais, mesmo que não use seu poder. O simpático mangá criado por Eiichiro Oda discute temas sérios e atuais, como política, conflitos, preconceitos, desigualdades sociais, luta de classe, escravidão e vários outros problemas do nosso dia-a-dia não pirata que veremos a seguir.
Absolutismo e pobreza
Durante a jornada em busca do tesouro, Luffy passa por diversas vilas e reinos com problemas. Muitas vezes esses problemas eram causados pelos próprios governadores que buscavam riquezas a qualquer custo, mesmo que isso significasse sacrificar o bem-estar da população.
Um exemplo disso é em Alabasta. Crocodile, um pirata que usurpou o trono, deixava toda a população com sede, pois fazia parte de seu processo de enriquecimento. Um criminoso com a autorização do Governo Mundial para agir assim. Desde que fizesse o que a organização ordenasse, ele poderia oprimir e governar quantos países quisesse.
Já em Dressrosa, Donquixote se tornou um ditador transformando seus inimigos políticos em brinquedos para trabalhar para ele e financiar o tráfico de armas para outros reinos. As pessoas transformadas em brinquedos eram apagadas da memória da população e a situação do que acontecia permanecia desconhecida.
Com a passagem de Luffy nos locais que eram explorados, ele criava uma revolução, auxiliando os locais a acabar com as desigualdades sociais. As soluções sempre variavam de acordo com as necessidades da população. Em Dressrosa, o trono voltou para um rei bondoso que se preocupava com o povo e em criar uma nação pacífica. Em Drum, teve até eleição para decidir quem seria o novo representante daquela população. Luffy age como um libertador, por seus princípios.
Apagamento da história para controlar o futuro
Conhecer a história é fundamental, principalmente para não cairmos nos mesmos erros. Em One Piece, na ilha de Ohara, era o local habitado por estudiosos e arqueólogos. Um lugar com muitos livros e conhecimento. A pesquisa desses estudiosos começou a incomodar o Governo Mundial que enviou a Marinha, pois eles estavam pesquisando sobre o “século perdido”. Para evitar que a verdade viesse ao conhecimento das pessoas a Marinha mandou destruir toda ilha.
O “século perdido” é uma lacuna de 800 a 900 anos no tempo da história de One Piece, qualquer registro público dessa época foi apagado por ordens do Governo Mundial, autoridade máxima e política que controla as regras sociais dentro do mangá. Por lei o assunto é proibido e até mesmo censurado para as pessoas mais comuns. Existem organizações que exterminam quem ousa tocar no assunto e quando necessário medidas como genocídio são autorizadas, como na ilha em que morava os historiadores.
No anime, os historiadores, arqueólogos e antropólogos dedicam suas vidas para pesquisar e trazer informação para a população sobre a sua história ser apagada. Quando o Governo Mundial descobre eles não só decidem executar os pesquisadores como, apagar do mapa a ilha. Isso para que nenhum cidadão que sobrevivesse pudesse no futuro arriscar sua soberania.
A única pessoa que sobrevive é a Nico Robin, que é caçada durante toda sua vida, pois ela conseguia ler os poneglífos que contém escrituras a respeito da história da humanidade e poderia descobrir os segredos do passado.
Um mundo racista
A diversidade se faz presente em One Piece e quanto mais o anime avança, podemos ver as diversas raças e culturas que existem. Uma dessas raças é deixada de lado por puro preconceito. A raça dos homens-peixe é exótica em relação aos seres humanos e qualquer lenda sobre eles se espalha facilmente.
Os primeiros homens-peixes que temos contato no anime são um bando de piratas que estão explorando a população em uma ilha. É possível notar que eles odeiam os humanos e os enxergam como seres inferiores, já que os humanos não conseguem viver no fundo do mar.
Com o decorrer da história é possível notar que o ódio dos homens-peixe em relação aos humanos é pelo fato de que os humanos os odeiam e os violentam muito mais. Dentro do anime os homens-peixe são equivalentes a qualquer pessoa não-branca da nossa sociedade.
Eles são tratados como uma sub-raça, portadores de doenças, monstros violentos e perigosos, além de inferiores e que só servem como uma mão de obra barata. Em One Piece, a comercialização de espécies não-humanas é tão normalizada que é quase impossível sobreviver sem ser em um sistema que não seja humano.
Durante a passagem de Luffy na ilha dos homens-peixe, descobrimos a história triste da rainha que tentou juntar a espécie com os humanos, mas o preconceito entre os povos acabou de forma trágica.
Corrupção
A corrupção aparece em todo o anime, mas o que ganha bastante destaque é a corrupção dentro da organização da Marinha. Em One Piece, a Marinha é responsável por manter a paz e a ordem, se opondo aos piratas que têm fama de seres “maus”.
O autor Eiichiro Oda faz questão de deixar claro que Luffy é considerado uma pessoa de bem, mesmo sendo um pirata. Através do anime, ele também mostra que a Marinha toma muitas decisões duvidosas e dignas de um “vilão”.
Isso é retratado quando alguns personagens militares passam pano para violações contra os direitos humanos, eles fazem vistas grossas ao leilão de escravos que acontece em Sabaody. O autor mostra que mesmo que a instituição tenha essas atitudes, ainda existem pessoas lá dentro se esforçando para mudar as coisas, como o almirante Fujitora ou a Tashigi.
O fedor da burguesia
No mundo de One Piece existem os Dragões- celestiais, que fazem parte do 1% mais rico. Eles são considerados como deuses por supostamente serem descendentes das 19 famílias/reinos que formaram o Governo Mundial, sendo os fundadores. Ou seja, eles seriam uma raça pura que decidiu permanecer em Alabasta, seu local de origem.
Dentro da obra, eles estão na mais alta posição da sociedade e são considerados donos de tudo e de todos que existem. Um rei poderia ser usado como tapete por eles, se algum deles assim o desejasse, ou uma mulher poderia ser obrigada a se casar com um nobre e a serem suas escravas, até mesmo escravas sexuais, entre outras coisas que fosse do desejo de um Dragão- celestial.
O anime mostra que a sociedade de One Piece funciona em torno de manter a posição social e o status desse grupo. O Governo Mundial e os seus exércitos são a guarda pessoal deles e qualquer um que tentar se levantar contra eles sofrerá.
Esse grupo usa pessoas como transporte e se recusam a dividir o mesmo ar com outros seres humanos. É possível notar que o autor usa esses personagens para mostrar que eles são os verdadeiros vilões e não os piratas, como o Governo tenta impor a população enquanto a oprime.
Os Dragões-celestiais são os maiores escravocratas que existem em One Piece e eles se divertem com isso. Eles usam os escravos para tudo, até mesmo para mover o chão que pisam.
Quando o Luffy, protagonista do anime, se aborrece com um nobre que está tentando escravizar uma sereia, ele acaba com ele na porrada. O simbolismo do momento é forte, pois Luffy é um símbolo de rebelião. Mas nesse momento ele foi capaz de se livrar da retaliação que uma rebelião contra o sistema poderia causar.
Revolução
Em One Piece existe o Exército Revolucionário e seu objetivo é defender a liberdade do povo, lutar pelo fim dos Dragões- celestiais e a destruição completa do Governo Mundial. Os nobres o consideram como o grupo mais perigoso que existe, pela forma que eles conseguem se infiltrar em países que estão dominados por injustiças sociais e ditadores, educar e armar o povo para serem protagonistas de suas próprias revoluções.
A beleza do Exército Revolucionário se dá por sua diversa organização, incluindo todas as raças, cores e gêneros, como um símbolo de que a revolução ou é para todos ou não será para ninguém.
Live- action
Desde que foi anunciado em 2019, o live- action foi muito aguardado. Com as expectativas altas, a série da Netflix recebeu previsões otimistas e pessimistas, já que as adaptações de animes e mangás não têm um histórico favorável.
O começo da série é animadora, o ator do personagem principal consegue captar a agilidade e carisma do Monkey D. Luffy. Porém, a forma como os roteiristas tentam encaixar e condensar vários episódios do anime em um só capítulo do live- action prejudica a forma como os personagens são desenvolvidos.
Os três personagens principais: Luffy, Nami e Zoro, brilham. Mas outros personagens, como Usopp e Sanji, não encontram seu lugar e interagem pouco com o mundo que a série construiu. Personagens que são tão importantes no anime são apenas figurantes no live- action.
A primeira temporada perde conceitos importantes para o universo do One Piece. Também simplifica a crítica social que existe no anime, mesmo que traga o argumento dos abusos da Marina e do Governo Mundial. A série da Netflix evita se aprofundar no debate e adota uma postura mais isenta, talvez por não haver tempo suficiente para explorar os assuntos.
Apesar da narrativa parecer rasa, a escalação do elenco principal foi certeira. Os atores principais conseguem transparecer a essência de cada personagem. Além disso, os efeitos visuais que preocupavam aos fãs, estão impecáveis. Mesmo muitas vezes escondidos através de cenários escuros.
Outro acerto é apostar em um estilo como cartun, mais próximo ao do anime sempre com cores vibrantes usadas para ressaltar a atmosfera otimista das aventuras dos Chapéus de Palha. A nova série da Netflix funciona como uma porta de entrada para novos fãs.
Isso se dá ao carisma e à dedicação do elenco principal, mas óbvio que não se compara ao mangá e ao anime. Fãs de longa data enxergam o live-action como uma forma de tentar encaixar e alcançar como consumidor do anime o público não-asiatico e ocidental.
A ficção imita a realidade
Não muito diferente do anime, a realidade nos mostra que na última década vimos a ascensão de discursos fascistas que pregam a revisão histórica com o fim de manipular e alienar a população. Vemos que a ficção mostra parte da realidade.
Concomitantemente vimos esses mesmos discursos junto com a exaltação e a reivindicação de regimes autoritários e ditatoriais sobre o argumento da manutenção de valores, que assim como no anime, não passava de da defesa do status da burguesia.
Sobre o racismo, Oda traz o tema dentro do anime como algo normal que acontece dentro da sociedade, profundamente ligado a bases políticas, sociais e econômicas. A forma que o anime retrata o absurdo de que os homens-peixes não sejam merecedores de dignidade, nos mostra que o anime amplia a discussão e o debate se expande de forma a desaguar na realidade da nossa sociedade.
Realidade essa que aparentemente não dá para sobreviver sem um sistema que demoniza tudo que não é branco ou feito por brancos. Outra semelhança com a realidade é que no anime existem os dragões-celestiais que são os maiores escravocratas dentro do One Piece e eles usavam os escravos para tudo.
Não muito diferente da realidade, aqui no Brasil os portugueses(brancos) escravizaram os negros e indígenas de tal forma que podemos ver as marcas dentro da sociedade até hoje. Assim como no anime, na vida real a opressão racial pode criar cicatrizes profundas e difíceis de serem superadas por um povo.
One Piece nos mostra que existe beleza em um dos maiores animes da cultura pop, e essa beleza tem em sua essência alertas importantes sobre temas fundamentais. Nos ensina que para derrubar um sistema não é necessário apenas um momento de raiva. O combate precisa ser organizado e coletivo ou nada será efetivo.
Na obra escrita por Eiichiro Oda, somos apresentados a um país que prosperou quando entendeu que a melhor forma de combater o crime não é criar cadeias, mas sim educar as pessoas. Ele nos leva a pensar e questionar sobre questões sociais, bem como temos seguido como nação.