
O retorno inevitável do assunto: ditadura militar
- 5 de março de 2025
- comments
- Theillyson Lima
- Posted in Análises
- 0
Entre a memória, história, mídia e agora um filme internacional vencedor do Oscar.
Nátaly Nunes
Ao pesquisar por “Ditadura Militar” no Google, todas as recentes matérias escritas vem com o adicional do nome do filme “Ainda Estou Aqui”, indicado a três categorias ao Oscar. Um assunto de dar nó na garganta e que nos últimos anos vai e volta na mídia baseado em acontecimentos externos.
Agora, com o filme resgatando o tópico, diversas formas de contar essa narrativa foram abertas. Nesse texto, analisaremos como o jornalismo pegou o gancho e está retratando o tema. Será que a imprensa tem aproveitado a oportunidade ou dado palco apenas para a popularidade do filme em si?
Segundo dados do Google concedidos a Omelete, em novembro do ano passado, mês de estreia do longa, as buscas por ditadura militar no Brasil atingiram um pico que não era visto desde 2022, logo após as eleições presidenciais. Impulsionado pelo filme, pesquisas com a pergunta “o que é a ditadura militar?” cresceram em 510%. Outras como “quantas pessoas morreram na ditadura militar?” 350% e “como é viver em um regime militar?” 160%.
Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, a história verídica de sua própria família foi contada no filme. O enredo gira em torno de Eunice Paiva, mãe de Marcelo, que ao ver seu marido Rubens Paiva ser levado a mando do exército, e depois descobrir que foi brutalmente assassinado, se encontra em uma difícil situação e é obrigada a reestruturar sua família. Ele retoma os estudos e aos 48 anos se forma em Direito. Anos depois, Eunice descobre que cinco homens foram denunciados por tortura e assassinato de seu marido, mas até hoje continuam impunes.
A menção em todo tipo de desdobramento
É difícil noticiar sobre “Ainda estou aqui” e não voltar o olhar para os chamados “anos de chumbo”. Atrelado a diversas informações técnicas e entrevistas, apenas falar sobre Rubens Paiva já conta as consequências desse governo. Em meio a grande demanda de informar indicações, prêmios e o sucesso, os portais fazem questão de frisar que, o que aconteceu com o personagem principal faz parte de uma realidade do Brasil no passado. Os créditos da base do roteiro não vieram da imaginação de alguém.
O G1, por exemplo, fez uma matéria explicando que os celulares foram banidos do set de filmagens, o texto contava sobre o que a equipe fazia em seu tempo livre e novos hobbies. Mas ao final, um pequeno resumo do que se passa no filme. Não importa o assunto, na hora que o jornalista vai escrever para indicar ao leitor sobre o contexto do filme, a ditadura é mencionada.
Em seguida, opiniões também vão aparecendo em relação à importância que o próprio filme deu à ditadura militar. Para alguns, isso foi de suma importância, para outros, o foco foi perdido. Em uma matéria para o jornal Gazeta do Povo, um colunista trouxe a reflexão: “No fim das contas, a única coisa que ainda está aqui é o viés ideológico falando mais alto do que qualquer outra coisa. É o que explica também o ufanismo gauche da mídia com o filme”.
O palco do Oscar também quer saber
Um filme baseado em fatos reais, geralmente leva o público a buscar informações sobre o contexto em que se passa a história. Se muitos brasileiros estão sendo pegos de surpresa com alguns acontecimentos da época da censura, que dirá os estrangeiros. Nos Estados Unidos o filme passou em mais de 700 salas de cinema e arrecadou mais de 5 milhões de dólares.
O jornal The New York Times fez uma reportagem sobre “Ainda Estou Aqui” não ser apenas um filme e sim um resgate de memória, que os filmes, especialmente os sul-americanos, estão atentos a isso pois tentar negar ou ignorar os ocorridos tem efeitos duradouros. O principal objetivo é mostrar a importância em deixar marcado na história o que, por vezes, acaba sendo silenciado. No próprio filme, em uma cena Eunice discorda firmemente quando um repórter pergunta se ela não deveria apenas seguir em frente e parar de tentar consertar o passado. É preciso dar um jeito!
Seguindo essa linha, a matéria trouxe como exemplo a divergência que houve no Brasil com campanhas dos grupos de extrema direita que se uniram para tentar boicotar o filme. Por fim, Walter Salles afirma na entrevista que o cinema reconstrói a memória e são instrumentos contra o esquecimento.
Para o jornal americano The Hollywood Reporter, a história da ditadura foi contada através da experiência pessoal de Fernanda Torres, que deu uma entrevista e contou como foi viver a censura na pele (aqui vale ressaltar novamente que ela não estava se referindo às coisas que viveu ao interpretar Eunice Paiva, e sim contando de sua própria infância que foi durante a época da ditadura militar). “O que realmente me marcou, no entanto, é como ele descreve o que também foi a minha infância. Meu irmão, quando viu o filme, disse: ‘Meu Deus, essa é a nossa vida!’.”
Como consequência…
“Lenta, gradual e segura” as famosas palavras ditas pelo ex-presidente Ernesto Geisel sobre o caminho a ser percorrido para o fim da ditadura. Porém, até hoje existem interrogações e casos em aberto sobre o que realmente aconteceu ao longo desse processo que, obviamente, não foi totalmente concluído.
Com o filme e a imprensa revisitando esse assunto, o STF votou que a Corte pode voltar a julgar a aplicação da Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos na ditadura militar. Análises sobre ocultação de cadáver é um dos tópicos, pois o crime continua sendo cometido enquanto o corpo não for encontrado.
De acordo com o dicionário, a palavra anistia significa “ato do poder público que declara impuníveis delitos praticados até determinada data por motivos políticos ou penais, ao mesmo tempo que anula condenações e suspende diligências persecutórias”. Portanto, na época a lei permitiu o retorno dos exilados e a soltura dos presos políticos, ao mesmo tempo que deu impunidade aos torturadores.
Tanto que, apenas em janeiro deste ano que a certidão de óbito do ex-deputado Rubens Paiva foi ratificada. No final do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça determinou que os cartórios modifiquem os documentos que antes constavam como “desconhecida” ou “de acordo com a lei 9.140”, a Lei dos Desaparecidos, para “Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”, no campo “Causa da morte”.
Em um protesto feito em fevereiro deste ano, ativistas foram em frente à residência do general reformado do Exército José Antônio Nogueira Belham, no Rio de Janeiro, um dos acusados de matar Rubens Paiva e escreveram no asfalto “Ainda estamos aqui”.
Respondendo a pergunta do segundo parágrafo desse texto, a imprensa ainda tem revisitado o passado para esclarecer histórias sim. Mesmo que algum canal não quisesse tocar nesse tópico para dizer coisas de anos atrás, o presente se moldou e, como vimos, novos desdobramentos apareceram, tornando inevitável ignorar o acontecimento principal.
Por fim, é importante refletir sobre o contexto atual: se estivéssemos na época da ditadura, textos como esse e filmes como “Ainda Estou Aqui” seriam censurados, já que qualquer forma de discussão diferente seria silenciada, com apenas uma narrativa sendo permitida.