O Jornal Nacional está começando
- 5 de junho de 2024
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- Theillyson Lima
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Tragédia, show, críticas e a virada de chave na cobertura da TV Globo.
Victor Bernardo
“Estamos prontos! E a TV Globo vai exibir o show da Madonna hoje, logo depois da novela Renascer. O Globoplay vai ter sinal aberto para não assinantes, e o Multishow também vai transmitir. Ótimo show pra você. Uma boa noite e um bom fim de semana.”
Foi assim, com um sorriso no rosto, que Ana Paula Araújo e Hélter Duarte encerraram o Jornal Nacional em 4 de maio, depois de uma reportagem de quase cinco minutos sobre o show da Madonna em Copacabana.
Não há problema no maior jornal do Brasil valorizar e divulgar um evento cultural dessa magnitude. No entanto, finalizar o programa nessa toada enquanto parte do país passa pela maior tragédia climática da sua história rendeu críticas bastante justificáveis à emissora, levando a uma mudança de tom na cobertura.
A cobertura até esse ponto
A tragédia que assola o Rio Grande do Sul começou oficialmente no dia 27 de abril, quando foram registrados os primeiros alagamentos em Canoas, Novo Hamburgo e Porto Alegre. Desde o dia 21, no entanto, a previsão meteorológica era de “sucessivos episódios de chuva no estado, com altos volumes em algumas áreas”.
Durante essa semana, o Jornal Nacional, maior telejornal do país, sequer mencionou o problema. O segmento meteorológico agia como se essa fosse uma frente fria como qualquer outra. A primeira menção de destaque às chuvas foi apenas no dia 30 de abril, quando cinco pessoas já haviam morrido e o nível do Guaíba já estava acima da taxa de alerta.
Nos próximos dias, a tragédia seguiu sendo mencionada, com reportagens de 2 a 3 minutos, em média.
Conforme a magnitude do caso aumentou, a cobertura também foi se intensificando, com cada vez mais espaço de tela, repórteres ao vivo e atualizações sobre os números. Apesar disso, a crítica era em relação ao foco em outras coisas. No exemplo do dia 4 de maio, quando 55 pessoas já haviam morrido em decorrência das chuvas, o show da Madonna teve mais tempo de tela do que a crise climática.
É Fantástico
Uma pequena pausa neste momento para analisar outro produto jornalístico muito relevante, que acabou se somando às críticas relacionadas ao Jornal Nacional e contribuindo para a mudança que aconteceria na próxima semana.
Levando em conta o dia 27 de abril como início “oficial” da tragédia, não seria justo esperar que a edição do Fantástico do dia 28 mencionasse qualquer coisa a respeito disso. Nesse ponto, ainda era um caso “normal”, que infelizmente já havia se tornado recorrente no Rio Grande do Sul, mas que ainda não apresentava nada novo em relação aos outros anos. O próprio Jornal Nacional só começou a cobertura no dia 30 de abril.
Diante disso, a primeira edição da revista eletrônica que abordou o caso foi a de 05 de maio, justamente no dia seguinte à fatídica edição do Jornal Nacional que gerou tanto alvoroço.
Entre reportagens, notas e entradas ao vivo, o programa teve seis conteúdos voltados à tragédia, totalizando cerca de 23 minutos de tela. Não é pouco, longe disso. Mas, quando colocado em perspectiva, parece insuficiente.
Em contrapartida, o show da Madonna, realizado no dia anterior, teve os mesmos seis conteúdos, mas com 34 minutos de tela. Além disso, outras pautas culturais como o filme do Sidney Magal, a turnê do Bruno Mars e o Rock in Rio ocuparam mais 14 minutos.
Novamente, não há nenhum problema em abordar shows e eventos culturais, isso faz parte do jornalismo. Especialmente no Fantástico, essa característica sempre esteve presente. Apesar disso, junto à insatisfação que já existia por conta do Jornal Nacional, esse fato foi a gota d’água.
Bonner no RS e a virada de chave
As críticas à emissora não foram poucas, especialmente nas redes sociais. Também não é difícil imaginar que o Grupo RBS – afiliado da Rede Globo no RS e um dos maiores conglomerados de mídia do país – tenha ficado insatisfeito com o tratamento dado à cobertura.
Diante disso, a partir do dia 6 de maio, a Globo deu uma guinada na forma como cobria a tragédia. William Bonner, o rosto do jornalismo da emissora, foi para o Rio Grande do Sul e passou a apresentar diretamente de Porto Alegre.
Uma análise rápida do ponto de vista da semiótica mostra como Bonner mudou completamente o tom adotado até então. Ele apresentava o programa com uma camiseta preta (sem o característico terno) e com a barba por fazer, de forma sóbria, quase de luto. Sem os apetrechos característicos do programa (bancada, lapela, teleprompter, etc), com a logo da RBS sempre apontada para frente no microfone e com entrevistas ao vivo no meio do desastre, ele parecia mais um repórter de campo do que um apresentador.
No dia 6, ainda, mais de 45 minutos (dos 55 que o programa teve no total) foram dedicados a uma cobertura intensa da crise climática, com reportagens de diversas abordagens, entradas ao vivo, entrevistas e até uma participação do Governador do Estado, Eduardo Leite.
A partir de então, diariamente, Bonner visitou alguns dos locais afetados de Porto Alegre, além de centros de distribuição de doações, órgãos públicos e até a redação da própria RBS.
Assim como o Jornal Nacional, o Fantástico também passou a adotar um tom mais sério na cobertura. As próximas duas semanas foram de bastante tempo dedicado à tragédia, contrastando com o primeiro domingo.
Business as usual
Embora ainda seja difícil vislumbrar um fim para o caos instalado no Rio Grande do Sul, as coisas começaram a caminhar após a baixa das águas. Para a Globo, isso significou voltar à normalidade.
No dia 16 de maio, o nível do Guaíba ficou abaixo dos cinco metros (a cota de inundação é de três) e com uma tendência de queda. Moradores que precisaram sair de casa depois que o lago transbordou começaram a voltar neste momento.
Com isso, William Bonner retornou à bancada do Jornal Nacional, que aos poucos foi diminuindo o foco na tragédia. Embora ainda seja bastante mencionado, o desastre já ganhou um tom de “o pior já passou”.
Outras coisas acontecem pelo Brasil. A vida continuou nas outras unidades federativas, e parece injusto cobrar que um programa de abrangência nacional ignore isso completamente para seguir dando quase 100% do espaço de tela a uma região, por maior que seja o problema lá.
Foi com atraso (e talvez só graças às críticas), mas a Globo fez o que deveria como grande expoente do jornalismo brasileiro. Levou Bonner para o Rio Grande do Sul por mais de uma semana, mostrou a magnitude do desastre, deu voz a todos os envolvidos, incentivou diversas campanhas de doações e retornou à normalidade quando as coisas começaram a melhorar. Entre erros e acertos, cumpriu seu papel.