O Cárcere do Mundo Novo
- 22 de setembro de 2015
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- Thamires Mattos
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Juliana Dorneles
“Pense, fale, compre, beba. Leia, vote, não se esqueça. Use, seja, ouça, diga. Tenha, more, gaste, viva”. O refrão da música Admirável Chip Novo de Pitty, tem um significado muito mais profundo do que a maioria dos que a ouvem e cantam supõe. O título da canção faz referência direta ao livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo.
A obra é uma fábula futurística que constrói uma forte crítica ao sistema totalitário, aos avanços da ciência, ao progresso, ao materialismo, à banalização dos relacionamentos e à massificação. Vale ressaltar que a ficção foi escrita em 1932, causando grande impacto para a sociedade da época. A influência da obra é tamanha que ele se encontra na lista dos livros mais censurados e chegou a ser proibido em certas bibliotecas municipais dos EUA.
Só muito depois, a ficção recebeu o devido reconhecimento. O livro foi classificado pela Modern Library, como o quinto no ranking das 100 melhores obras em língua inglesa do século 20. Também conquistou a 53ª posição no “top 100 maiores romances de todos os tempos”, pelo The Observer.
Na realidade de Admirável Mundo Novo , as pessoas são produzidas artificialmente e predestinadas à uma classe social. Não há relacionamentos familiares. As mulheres não são mães, apenas emprestam seu óvulo e útero para a reprodução. A ideia de manter qualquer contato afetivo era considerada vulgar, então, todo envolvimento servia apenas para satisfazer os prazeres sexuais. Por não ter família, os filhos são ensinados por um método chamado hipnopedia, que é a aprendizagem pelo sono. Durante anos, frases e ideias são repetidas na cabeça das crianças para que possam absorver os valores determinados.
Os seres humanos são pré-condicionados biologicamente para pertencerem a alguma casta, e se contentarem com ela. Não há tristeza, nenhum tipo de apego a nada, e caso alguma coisa afete o humor ou o bem-estar, cápsulas de uma droga chamada Soma devem ser ingeridas. Seu efeito extermina qualquer incomodo. Na realidade de Huxley, as pessoas vivem felizes e satisfeitas com o que são e tem. Se há qualquer tipo de transgressão às regras e normas os cidadãos são levados para uma ilha de isolamento, onde vivem como índios, ou selvagens.
É nesta realidade distópica que Bernard Marx, um dos personagens do livro, nutre um sentimento de insatisfação e rebela-se com a realidade imposta. Ele tem um defeito de fabricação genética e por isso é perseguido por seu chefe. Após uma série de acontecimentos, Marx descobre que seu superior engravidou uma mulher e que ela vive com a criança em uma destas ilhas de isolamento. Para recuperar o reconhecimento social e expor o superior, ele prova a veracidade da informação e traz à civilização Linda e seu filho, John. No decorrer da história, Linda acaba morrendo, e John, apelidado de Selvagem, é considerado uma aberração pela sociedade.
Em uma análise fria da história, parece impossível viver acomodado em tal sociedade, acostumar-se a esta realidade. Tal qual foi para o Selvagem. Por outro lado, se pensarmos que cada cidadão daquela comunidade foi condicionado a viver nas condições descritas desde o nascimento, viver fora desta realidade distópica é que pareceria loucura. O que Huxley propõe é que as construções sociais a que nascemos submetidos, os comportamentos aceitáveis a que aprendemos a nos enquadrar ainda neófitos, e os discursos incutidos por uma vida de educação e tradição são as barreiras mais intensas que nos confinam a um sistema. Elas são praticamente irreversíveis.
A Teoria Hipodérmica da Comunicação, também conhecida como Teoria da Bala Mágica, afirma que todo estímulo causado por uma mensagem enviada terá resposta, sem encontrar resistência do receptor, como um disparo de arma de fogo ou como uma agulha hipodérmica que insere logo abaixo da pele seu conteúdo. Estes estudos, desenvolvidos por Harold Laswell e Paul Lazersfeld, acreditavam que o receptor era passivo. Incapaz de tomar posições de forma independente, ele apenas aceitaria as informações transmitidas (inseridas sob sua pele) moldando sua existência sob padrões impostos.
Admirável Mundo Novo é um retrato de uma sociedade que constrói vidas por meio da atuação desenfreada e amoral dos meios, pela manipulação, alienação e dominação exercidos por eles. Um processo de mediocrização, emburrecimento social. Diferente de hoje? Os cidadãos deste “Mundo Novo” são apenas robôs, ensinados a pensar e agir, a sentir, a entender. Tem suas identidades roubadas e confinadas a estereótipos impostos. A obra é uma apologia aos estudos de Laswell e Lazarsfeld, mas é tão lúcida e atual hoje quanto no passado.
Em certa passagem do livro, conversando com sua amiga Lenina, Marx desabafa: ” […] O que sentiria eu se pudesse, se fosse livre, se não estivesse escravizado pelo meu condicionamento?”. Logo em seguida completa: “Isso me dá a sensação de ser mais eu, se é que você compreende o que quero dizer. De agir mais por mim mesmo e não tão completamente como parte de alguma outra. De não ser simplesmente uma célula do corpo social ”. Marx demonstra seu anseio pela liberdade, por se desvencilhar das garras da massificação. Diferente dos demais, ele parece reconhecer a influência que esses valores “injetados” na cabeça da população, desde a infância, causara.
A realidade do condicionamento, fortemente criticada por Huxley, é nossa realidade. Estamos, tal qual o “Mundo Novo” do autor, presos a mecanismos alienantes, condicionantes que nos ajudam a fugir da realidade. Diversas pílulas de Soma nos são oferecidas diariamente. Instrumentos do Estado e dos poderes econômicos a fim de impedir que nos voltemos a relidades sociais e políticas que precisam ser questionadas. Filmes, músicas, novelas, propagandas. Hoje os receptores são levadosa pensar e agircomo a mídia quer. Ela pauta quais serão as conversas no jantar em família; quais roupas, sapatos e acessórios devem ser usados; qual é o padrão de beleza, de lazer e de esporte; até mesmo qual será a comida que se deve comer e comprar. Ela pauta o que as pessoas devem ser e se não seguirem essa ditadura se tornarão marginalizadas e excluídas.
Apenas o Selvagem, criado longe dos processos sociais de condicionamento consegue enxergar o absurdo da situação, a necessidade de libertação. Em um mundo cada vez mais massificado os Selvagens se extinguem pouco a pouco. Quando Huxley, 30 anos depois de publicar sua obra, retomou a ficção a fim de comparar a realidade com a fábula criada por ele, se deu conta de que suas previsões eram mais próximas e reais do que nunca. Sobre esta descoberta escreveu: “Talvez as forças que agora ameaçam o mundo sejam demasiado poderosas para que se lhes possa resistir durante muito tempo. É ainda nosso dever fazer tudo que pudermos para resistir-lhes”.
Portanto, pare! “Pense, fale, compre, beba. Leia, vote, não se esqueça. Use, seja, ouça, diga. Tenha, more, gaste, viva”.