Nárnia: o país que não muda
- 19 de abril de 2023
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- Theillyson Lima
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Ler o livro ou ver o filme, qualquer uma das escolhas vai te transportar para o mesmo mundo mágico.
Lucas Pazzaglini
Clive Staples Lewis acordou certa na manhã, na década de 50, com uma história na cabeça, 3 meses depois o primeiro livro da saga “As Crônicas de Nárnia” estava terminado, e eu acredito que nem ele imaginava o quanto essa história faria sucesso.
Existem 7 livros na coleção de “As Crônicas de Nárnia”. A saga já vendeu mais de 120 milhões de cópias ao redor do mundo e impactou toda uma geração de leitores. O interessante é que no Brasil as vendas dos livros cresceram absurdamente no ano de 2005, quando o primeiro filme da série chegou aos cinemas.
“Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa” é sem dúvida o título mais conhecido entre toda a saga, principalmente por ser a primeira adaptação para o cinema. Um fato interessante é que esse não é o primeiro livro na ordem cronológica da coleção, existe um antes que já ambienta o mundo fantástico de Nárnia, mas ele que foi escolhido para começar a história no cinema.
Para a escrita desse texto me forcei a um exercício de comparação literal: assisti ao filme enquanto lia o livro. É impressionante o quanto os dois são tão parecidos, uma das adaptações mais idênticas já feitas. Obviamente existem cenas diferentes, até porque o livro e o filme cumprem objetivos diferentes, se permanecesse tudo como no livro, o filme seria maçante e entediante, portanto, em alguns momentos cenas com mais dinamismo foram inseridas.
Para analisar os prós e contras da transição do livro para as telas, vamos pelo caminho contrário ao título: o guarda-roupa, a feiticeira e o leão. Essa ordem pode parecer muito errada, mas no quadro geral ela faz sentido.
O guarda-roupa e o lado de cá
“Era uma vez duas meninas e dois meninos: Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a guerra, quando tiveram de sair de Londres, devido aos ataques aéreos. Foram os quatro levados para a casa de um velho professor, em pleno campo, a quinze quilômetros de distância da estrada de ferro e a mais de três quilômetros da agência de correios mais próxima”.
A história começa assim. Uma leitura de menos de 1 minuto já te explica todo o contexto e quem são os nossos personagens principais, e já é aqui que começa a mágica do cinema. A preocupação do filme é ambientar todo o contexto da guerra, da família e da tragédia, coisa que uma leitura de um minuto não faz. O primeiro frame do filme é a de um piloto de avião de guerra, que está prestes a soltar bombas. Perceba que a situação é igual a do livro, mas existem focos diferentes, o corte é para a casa dos personagens principais que estão correndo para o abrigo anti bombas, e aqui já somos apresentados a eles e as suas personalidades específicas.
Até os irmãos chegarem a casa do velho professor, se passaram 10 minutos de filme, contrariando a expectativa de uma leitura curta. Mas todo o processo é justificado, porque existe a necessidade de ambientar a guerra e dar uma causa real para a mudança da família, o que só poderia ser feito se os fatos fossem expostos explicitamente na tela.
Ao transpor para tela é necessário que imagens façam o trabalho que uma única frase faz, por conta disso, existe uma demora maior nessa transição. Já nesses primeiros minutos os personagens também são explorados em pequenas conversas e discussões, que já mostram quem são e como agem, o que faz diferença para a construção da obra.
A feiticeira e Nárnia
Um dos pontos altos do filme definitivamente é a forma que Nárnia é representada: exatamente como no livro. Um mundo mágico que a princípio está coberto por neve, porque o inverno não passa e o natal nunca chega. Para a construção desse universo fantástico foram utilizados efeitos especiais, que estão presentes em mais de 1400 cenas do filme. Mas eles são tão bem feitos que é possível que passe despercebido.
É interessante perceber também o sentimentalismo que os diretores trouxeram para o filme ao apresentar Nárnia pela primeira vez. Assim como no livro, quem encontra o país é Lúcia, a caçula e seu primeiro encontro com Nárnia é narrado assim: “Sentiu-se um pouco assustada, mas, ao mesmo tempo, excitada e cheia de curiosidade”. A produção do filme percebeu que essa essência deveria ser mantida, por isso criaram um cenário igual ao livro e apresentaram ele para a atriz apenas na hora em que a cena foi filmada, justamente para sua reação ser verdadeira.
É a atenção a detalhes assim que faz com que o filme se destaque entre outras adaptações. A essência é preservada em diversas ocasiões.
Por exemplo, quando o nome de Aslam é citado pela primeira vez, a reação das crianças é descrita da seguinte forma: “Ao ouvirem o nome de Aslam, os meninos sentiram que dentro deles algo vibrava intensamente. Para Edmundo, foi uma sensação de horror e mistério. Pedro sentiu-se de repente cheio de coragem. Para Susana foi como se um aroma delicioso ou uma linda ária musical pairasse no ar. Lúcia sentiu-se como quem acorda na primeira manhã de férias ou no princípio da primavera”.
Agora avance para 1:41:10 do filme, quando o nome também é citado pela primeira vez. A reconstrução de um parágrafo tão simples dura apenas 10 segundos, mas já é o suficiente para transmitir as emoções que foram descritas, focando no rosto dos personagens que interpretam cada uma das sensações.
Essa é a vantagem do cinema, não é preciso narrar o que os personagens sentem, suas expressões fazem esse trabalho, o que deixa mais tempo para explorar outros aspectos da história.
Para não dizer que estou defendendo demais a adaptação e não mostrando as diferenças entre os dois produtos, existem, sim, cenas que não existem no livro que foram inseridas no filme. Um exemplo é durante a fuga das crianças enquanto tentam chegar até Aslam. No filme eles estão sendo perseguidos por lobos e acabam se encontrando em cima de um rio congelado, mas o gelo quebra, a cachoeira que alimenta o rio descongela e tudo vira um completo caos. Lúcia acaba caindo no rio no meio da confusão, mas logo é resgatada.
Essa cena não existe no livro. A única referência ao rio é feita um pouco mais a frente na história: “Mesmo que não fosse o caminho certo, teria sido impossível continuar pelo vale durante o degelo, porque, com toda a neve que derretia não demorou para que o rio transbordasse e a corrente caudalosa inundasse a vereda por onde seguiam”.
Mas a inserção dela não provocou diferença alguma na história, ela simplesmente ofereceu maior dinamismo e ação ao filme. Afinal, um filme de aventura deve apresentar elementos que remetem ao gênero.
As cenas de Nárnia são da forma que você imagina ao ler o livro. À medida que o inverno vai passando, porque a feiticeira vai perdendo seu poder, efeitos especiais fazem as árvores e flores preencherem o lugar como se ele realmente estivesse encantado.
O leão continua o mesmo
O que diferencia essa adaptação das outras é o quanto os mínimos detalhes foram considerados para a produção do filme. Objetos como sacos de papel pardo e uma foto, não interferem no curso da história e nem fazem diferença para a trama, mas foram mantidos pelo apego a literatura.
Essa atenção pode ser vista especialmente em Aslam. O nome do personagem é citado 152 vezes durante o primeiro livro, e mesmo aparecendo da metade para o final, ele com certeza “rouba” a cena em cada momento que aparece, justamente pela emoção transmitida pelos personagens ao se referirem a ele.
“Aslam estava em pé, cercado por uma multidão de seres, que o rodeavam em semicírculos. Havia espíritos que moram nas árvores e espíritos dos bosques e fontes (dríades e náiades, como são chamados em nosso mundo)”. Aslam é apresentado dessa maneira no livro, e ler esse parágrafo é como se estivesse vendo o filme, porque ele é exatamente igual.
Outra cena impressionante, que ressalta o trabalho bem feito que os animadores fizeram no filme, é a reação das crianças ao verem o grande leão. “Quanto ao próprio Aslam, nem as crianças, nem os castores souberam o que fazer ou dizer ao vê-lo. Quem nunca esteve em Nárnia há de achar que uma coisa não pode ser boa e aterrorizante ao mesmo tempo”, essa é a sensação das crianças, e a forma que Aslam é representado passa o mesmo sentimento para o espectador.
A essência de Aslam é mantida do começo ao fim, tanto que ele é o personagem que mais tem falas iguais ao livro. A preocupação em representar um Aslam que C.S Lewis se orgulharia foi tanta, que não ousaram remontar nenhum traço da sua personalidade.
As cenas que seguem após o aparecimento de Aslam já remetem a guerra e caminham para o desfecho, e obviamente o final também é o mesmo, com algumas pequenas alterações para dar mais emoção ao filme, mas nada que altere o conteúdo.
Ao terminar de assistir ao filme, e ao livro ao mesmo tempo, a única conclusão é de que a experiência foi a mesma, porque a história, as cenas, as falas, foram as mesmas. Esse é o exemplo claro de que adaptações fiéis são possíveis, não é preciso desconstruir toda uma história para fazer com que ela caiba em uma tela de cinema.
“As Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa”, oferece um alento ao coração dos fãs, que tem a possibilidade de ver uma obra tão linda e escrita com tanto carinho, sendo passada palavra por palavra em uma tela, transformando aquilo que só habitava na imaginação em “realidade”.