Não ressignifique o alheio
- 16 de agosto de 2017
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- Thamires Mattos
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“Eu convido você, branco, pardo, negro, seja o que for, pode vir, pode usar o turbante, só me garante que na hora de chorar pelo negro morto em vão vocês também chorarão comigo, só me prometam que quando um negro sofrer preconceito vocês honrarão o turbante”, Slam Resistência
Thamiris Senis
Não é novidade que a moda dita as últimas tendências, as roupas, o corte de cabelo, as perfeitas combinações, tudo nos é apresentado através dos desfiles. Também é um fato que a moda muda muito, mas vira e mexe ela sempre volta com as chamadas “tendências retrô”. Só que os anos passaram, os séculos mudaram, e a moda ainda era feita só para brancos, o cabelo liso ainda era a base para uma beleza perfeita. Os olhos claros, a pele clara, onde se encaixavam os negros? Não tinham espaço. Onde se encaixavam as cacheadas? Não tinham espaço. Thaynara Messias não entendia isso, e pior, ela nem sabia que isso estava errado, porque desde sempre seu cabelo foi nomeado de “ruim”.
Pixaim e Macumbeira
“Nossa que cabelo duro. Thaynara, alisa essa juba! Imagina se pegar piolho nesse ninho aí. Oh nega do cabelo duro. Deve ser difícil cuidar desse cabelo pixaim, né?” Foi o que ela sempre escutou. Mas não era só o cabelo, tinha a cor de sua pele. Thaynara se viu diante de um grande dilema. Cedeu. Alisou o cabelo. O cabelo ficou frágil, quebrou, caía, mas tudo era feito em nome da moda e da aceitação. Foi difícil tratar do cabelo em queda, por isso Thaynara aderiu a um artefato muito usado por seus ancestrais, o turbante.
Ela que sempre viu nos livros de história negras fortes usando um turbante, achou que seria ótimo para representar suas raízes e, de quebra, esconder o estrago da química em seus cabelos. Só que para seu espanto foi ridicularizada. Como assim? O que estava errado? As pessoas olhavam com descaso. Preconceito. Foi então que veio o primeiro apelido seguido de uma risadinha. “Macumbeira”, exclamava um menino da sua sala. Todos riram. Ela não. Ela sentiu ódio.
Tendência
De repente, Thaynara começou a ver aquele seu reflexo de muito antes nas passarelas, do nada o cabelo afro tomou conta das últimas tendências. Ela ficou sem entender, agora o bonito era ser natural. Mas o que fazer com toda a química que colocou no cabelo? Demorou para tirar aquela carga branca de cima dos seus ombros e finalmente poder libertar os cachos.
Por um lado, ela estava muito feliz, porque agora ela não precisava mais esconder os cachos ou sentir vergonha do cabelo alto e com bastante volume. Só que Thaynara não queria que isso fosse apenas mais uma tendência da moda passageira. O que as pessoas não conseguiam entender é que o seu cabelo, a sua cor não era uma questão de escolha, era uma questão de honra. E para ela a honra não podia ser passageira.
E as tendências não pararam por aí, em um piscar de olhos os turbantes viraram ícones. Mas espera aí, não eram os turbantes que faziam as pessoas serem taxadas de macumbeiras? Ou isso só se encaixa aos negros? Thaynara Messias queria por um basta em toda essa “palhaçada”. Estava cansada de tanta hipocrisia. Foi então que conheceu um movimento. Um movimento que era contra a apropriação cultural. Para ela isso não era só um “mimimi”, era um problema sério. Sua cor e suas origens não deveriam ser respeitadas apenas por estarem na moda.
Apropriação cultural nada mais é do que a adoção de alguns elementos específicos de uma cultura por um grupo cultural diferente. Quando você usa um dread e nem sabe de onde vem ou o que ele já significou para o povo que lhe deu origem, você está se apropriando daquilo e do significado. Afinal, para você nada significa. O artefato possui um outro significado agora.
O historiador e professor Fábio Darius explica que a apropriação cultural não é um assunto novo. “A apropriação cultural de fato sempre existiu, embora com outros nomes e outras perspectivas”, observa. Mas então porque só agora ela passou a incomodar mais? O professor continua afirmando que o assunto começou a incomodar no contexto atual por causa das frentes militantes que ascendem no país. “Hoje em dia temos muitos grupos militantes que tomam a frente quando o assunto é minorias, e eles têm uma grande arma que são as redes sociais, e com isso os discursos ganham cada vez mais força”, explica.
Branco pode usar turbante?
Você deve se lembrar do caso da Thauane Cordeiro, uma jovem que foi diagnosticada com leucemia e por circunstância do tratamento acabou por perder seus cabelos. Buscando uma forma de esconder a cabeça despida, ela optou por usar um turbante. Mas então a jovem foi pega de surpresa quando uma negra a abordou e questionou sobre o uso indevido do turbante. Thauane se revoltou, logo arrancou o turbante, mostrou sua cabeça raspada exclamando: “isso se chama câncer! ”.
Thaynara afirma compreender o lado da jovem Thauane e explica um pouco como algumas mulheres negras enxergam esse caso. Para a estudante universitária, este é um assunto muito turbulento. “Muitas mulheres negras se sentem ameaçadas quando uma branca usa o turbante, pelo fato de que muitas vezes uma pessoa branca não entende a história por trás do artefato”, reflete. A respeito do caso da Thauane, o historiador Fábio considera que a abordagem da moça foi equivocada. “Este tipo de relação é prejudicial e obviamente incomoda a todos aqueles que tem o mínimo de bom senso no mundo”, pondera.
Então, qual seria o problema em si? Ao que parece é a desconsideração da origem de determinado objeto e o fato de usá-lo como se fosse apenas um artefato da moda. “A pessoa branca na maioria das vezes não conhece a luta por de trás de um turbante, de um dread, de um cabelo blackpower e se apropria dessa cultura e romantiza toda essa luta”, expõe Thaynara. Ela ainda continua seu discurso afirmando que não vê problema em um branco usar turbante ou dread, desde que ele tenha a consciência do significado que aquilo carrega.
#VaiterbrancodeturbanteSim
Como decorrência do ocorrido, a estudante Thauane contou a história em sua rede social e em então lançou a hashtag (#vaiterbrancodeturbanteSim!). A postura desencadeou um efeito negativo. Thaynara comenta que quando viu a hashtag ser disseminada nas redes sociais, sentiu ódio. O mesmo ódio de quando foi chamada de macumbeira, o mesmo ódio que a seguia por toda a sua vida por não se encaixar em nenhum padrão de beleza. “O que me abalou foi o fato de que muitas brancas nem se quer sabiam o real significado daquele turbante, elas apenas queriam comercializar a causa”, frisa.
“Isso para mim é inadmissível”, continua a universitária. Para ela, a hashtag foi uma afronta, e mais uma prova de que o mundo não entende as verdadeiras lutas dos negros. “Elas não sabem o que significa usar um turbante e não sofrer preconceito, de você se olhar no espelho e não entender sua real identidade”, desabafa.
Apropriação cultural é só para movimentos negros?
Não. Assim como você vai ver nesta edição, existem outras culturas das quais nos “apropriamos”. Daiara Tukano, mestranda em direitos humanos, é índia e defende todas as causas indígenas. É importante você compreender que o objetivo deste texto não é polemizar. Você, leitor, deve estar pensando, como assim apropriação cultural indígena? Afinal, já ouvimos pessoas dizerem que “todo o Brasil é um pouco índio”.
Para Daiara a apropriação cultural se dá pelo fato de as minorias estão sempre sendo submissas ao homem branco e assim acabam se tornado excluídas. “Quando falamos de apropriação cultural, estamos nos referindo a identidade ética que é a identidade de um grupo, que têm uma cultura própria, onde muitas vezes esse grupo é colocado a periferia, a margem daquele grupo hegemônico”, explica. Então podemos considerar que as culturas indígenas e a negra, são grupos que acabam sendo colocados lá do lado de fora? De acordo com a professora Daiara, sim. “Nós, minorias, somos colocados quase que irreparavelmente longe do que é considerado o cânone cultural”, argumenta a índia.
Quando questionada sobre a frase, “todo Brasil é um pouco índio”, Daiara ironiza e ri. A ativista enfatiza que a questão não está minimamente relaciada à imagem mental que se cria (com tais frases) de um índio vivendo feliz na mata. “Ser indígena no brasil não é uma coisa fácil, nós nos assumimos índios e quando isso acontece estamos também nos colocando a frente de todas as lutas por nosso espaço”, desabafa. Para ela, o Brasil nem sabe o que de fato é ser um índio. “A imagem do índio descrito na carta de Pedro Vaz de Caminha, o índio descrito pelos bandeirantes e colonos, é muito diferente da realidade de ser indígena, pois somos cidadãos iguais a você e donos de uma história de sobrevivência de incessantes ataques e violências”, conclui.
Mas então o que de fato é apropriação cultural indígena? Daiara explica que é tudo aquilo que acaba sendo ressignificado. “Um exemplo: você fazer o dia do índio na escola e pintar a cara dos meninos de guache e fazer um cocar de cartolina é apropriação? Sim, porque o significado do cocar de cartolina não é o mesmo do cocar de verdade”, exemplifica. “Quando tiram a nossa cultura do nosso contexto, acabam também atingindo a nossa identidade”, adverte a professora.
Tudo (não) é apropriação cultural
Partindo do pressuposto que o brasileiro é um povo muito miscigenado, é facil pensar que, na conteporaneidade, como grandes consumidores dos produtos midiaticos e usuários ininterruptos das redes, fica-se sujeito todo tempo à musica, cinema, literatura e moda norte-americana. Seria tudo isso uma apropriação cultural? “Eu não vejo sendo uma questão de apropriação cultural, mas uma questão de ideologia sendo imposta ou não efetivamente. Veja, tudo acaba sendo uma apropriação, mas sem ser no sentido pejorativo da palavra, em um mundo cada vez mais interconectado é impossível que você não se utilize de desenvolvimentos percebidos ou criados por outras culturas”, afirma Darius.
O professor e historiador também enfatiza que a antropologia já há bastante tempo, praticamente desde os seus primórdios, tem percebido que um povo só avança e se desenvolve a partir da relação com outros povos, outras culturas. Portanto, o que existe não é uma cultura melhor que a outras, mas particularmente existem tecnologias que se unem em prol de uma cultura comum. “Não dá para se falar em apropriação cultural, pois muito antes da globalização você já encontra os povos em relações comercias uns com os outros e decorrente disso traços culturais de um povo acabam definido em um outro povo também”, conclui Darius.
Com isso, fica claro que o tema da apropriação cultural é muito amplo e divergente em opiniões. Thaynara entende isso, ela não está aqui para julgar ou condenar quem usa um turbante, desde que essa pessoa use com consciência.
“Eu convido você, branco, pardo, negro, seja o que for, pode vir, pode usar o turbante, só me garante que na hora de chorar pelo negro morto em vão vocês também chorarão comigo, só me prometam que quando um negro sofrer preconceito vocês honrarão o turbante” (2015, Slam Resistência)