Não falamos do Bruno?
- 23 de agosto de 2022
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A “falta” da mídia ao trocar crime por espetáculo e esporte no caso de Eliza Samudio.
Helena Cardoso
Imagine a seguinte situação: o goleiro de um dos principais times de futebol do Brasil comete um crime. Não uma infração leve, mas um crime considerado pelos promotores como hediondo. O que você espera que aconteça? O esperado é que todos pensem que ele estragou seu futuro como atleta, já que nunca mais será convocado para jogar profissionalmente, certo? É… não foi bem isso que aconteceu.
Eliza Samudio desapareceu em 2010 e seu caso logo foi tratado como homicídio. O principal suspeito? Seu ex-amante e goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes. O caso, como é comum se tratando de celebridades, repercutiu muito e de forma rápida. Na época, eram raras as pessoas que não sabiam o que estava acontecendo, principalmente quando quase todos os meios de comunicação exploravam qualquer oportunidade de usar a situação como geradora de audiência. Já que todos estão falando do julgamento, por que não trazer algo a mais e comentar sobre qualquer detalhe para aproveitar que o assunto está em alta?
Relevante para quem?
O jornalismo, ao tratar de grandes tragédias, já perdeu há muito o senso de o que é notícia e o que é apenas uma tentativa de conseguir cliques. A cada crime envolvendo pessoas de destaque social, parece que o instinto de conseguir público se sobrepõe à humanidade e sensibilidade. Como todo caso envolvendo celebridades, o crime recebeu cobertura completa. Mas será que um detento ganhar “banhos de sol” é mesmo notícia ou apenas curiosidade de um famoso?
Ler matérias como essa dá a sensação de ler uma revista de fofoca. É como se o ponto ali não fosse o crime e as atrocidades que cometeu para estar encarcerado, mas o que está fazendo agora lá dentro. De forma semelhante, os programas de TV apelaram para um viés mais parecido com uma série da Netflix.
A narrativa midiática apresentou a história sequencialmente, mostrando ao público cada desdobramento como se fosse ficção. O Fantástico, por exemplo, entrevistou em primeira mão o primo de Bruno, envolvido no caso, antes mesmo que o menor falasse com as autoridades. Já em 2015, o programa no qual Gugu entrevistou cara a cara o goleiro Bruno, bateu recordes de audiência. A espetacularização em cima do caso fez com que o público ansiasse por novas atualizações.
Chute na trave
Porém, não foi apenas isso que fez com que o caso fosse abordado de forma errada. O G1, por exemplo, foi campeão em escolher enfoques de mau gosto para as matérias. Um exemplo é o texto “Bruno ainda sonha em jogar uma Copa do Mundo, diz advogado“, que aborda de um jeito como se a ida para a cadeia fosse um empecilho em sua vida de jogador profissional, quando na verdade vemos que ainda hoje ele continua inserido no universo futebolístico.
Uma coluna da Folha de São Paulo, escrita por Renata Mendonça, critica o fato de Bruno ter recebido quatro propostas para jogar profissionalmente enquanto ainda estava preso. É como se o crime não importasse mais. Como se os times estivessem aproveitando da oportunidade para se promover. Respondendo a quem justifica essa atitude como ressocialização, Renata escreve: “Há mesmo esse compromisso todo com “recuperar seres humanos” ou só vale discutir ressocialização quando estamos falando de um atleta que vai atrair mídia e muita visibilidade para a equipe?”
Fora das grades, dentro do campo
A volta aos campos e a nova forma que Bruno está sendo retratado na mídia auxiliam o apagamento de seu passado. Ao utilizar o recurso de busca com o nome do goleiro no Estadão e na Folha, as primeiras notícias a aparecerem têm relação com futebol, mesmo que não diretamente com o atleta. Para encontrar informações sobre o caso de Eliza Samudio, o leitor precisa rolar bastante o jornal digital, mesmo que agora esteja acontecendo outro desdobramento do caso: um pedido de prisão a Bruno caso não pague a dívida de 90 mil de pensão para Bruninho, seu filho com a ex-modelo.
Dessa forma, o goleiro vai aos poucos voltando a ser retratado como qualquer jogador profissional. As matérias param de girar em torno das atrocidades que cometeu e começam a girar em torno de seu desempenho como atleta. Ao contrário do que se esperava de um assassino, Bruno recebeu os holofotes. No lugar de dificuldades para conseguir emprego como qualquer ex-presidiário, recebeu propostas de times. Bruno recebe gradativamente sua antiga imagem de volta, como se nada tivesse acontecido. Tudo isso por uma mídia que o transformou em assassino terrível e depois em jogador habilidoso novamente, mesmo que não tenha cumprido nem metade de seu tempo de pena.
Uma pessoa comete um crime e os jornais exploram todos os pontos para manter a audiência. Depois, a mesma pessoa é solta e os jornais exploram todos os outros pontos de sua vida, ajudando a “limpar” a imagem de assassino. Chega a ser morbidamente cômica a forma como alguém, colocado sob os holofotes pelo crime que cometeu, passa a ser retratado como um jogador comum.