Nada de novo debaixo da terra
- 16 de maio de 2018
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- Thamires Mattos
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Quando uma estrutura de poder se sente ameaçada, o único caminho poder ser se impor, derrubar o poder vigente e para isso utilizar da violência
Luciana Ferreira
Salomão foi muito sábio ao afirmar não haver nada de novo debaixo da terra. Essa frase foi dita pelo poderoso rei sem este ao menos ter o prenúncio dos acontecimentos posteriores a sua existência. Não conhecia o futuro, mas já sabia como poderosos e submissos há tempos conviviam lado a lado. Ou melhor, os primeiros em um patamar mais elevado do que os segundos. Afinal, os interesses de um em detrimento do outro não lhes permitiam conviver amigavelmente.
Segundo a narrativa Bíblica, havia no céu um ambiente de harmonia e paz. Os moradores daquele lugar pareciam conviver em tranquilidade, todos sabiam seus afazeres e demonstravam prazer em realizar suas atividades. Reconheciam a soberania e poder de seu Criador, e pareciam não se incomodar com isso. Não havia uma luta por poderes, existia uma hierarquia, mas ela não obrigava ninguém a se submeter a regras e leis indesejadas.
Mas algo de anormal apareceu para quebrar o fluxo do lugar. Um certo querubim quis ser maior que seu Criador. Ele já não aceitava a submissão voluntária. Queria ter seu próprio exército. Queria manda no local, bem como no dono do local. Convenceu alguns de sua legião a se rebelarem, a levantarem vários porquês. Frente a rebelião estava montada a estrutura: ele seria o chefe e aqueles que antes foram seus iguais, agora eram submissos a ele no desejo de tomarem o poder central.
A discussão em voga não é necessariamente a veracidade do cânone bíblico. Mas este é um relato pertinente para suscitar a ideia de onde possivelmente, a corrupção nas estruturas de poder se originou. A criatura quis sobressair ao Criador. O caos estava preste a se instaurar naquele lugar. Não havia saída, o anjo rebelde com toda sua estrutura de inaceitação precisava ser mandado para um lugar, ainda inabitável, chamado de terra.
No início era corrupção, e a corrupção estava no homem
Desde que o mundo é mundo se ouve falar em guerra por poder. Algo intrínseco ao homem. Para Foucault, o poder se caracteriza como uma prática social constituída ao longo da história. Uma jurisdição articulada em micro relações locais, como a família, por exemplo. Tendemos a utilizar poder como sinônimo de Estado, todavia, para o filosofo, embora este último utilize do primeiro para se instaurar, é possível encontrar formas de poder distintas do Estado, mesmo que por vezes a ele articuladas. E o poder não vem sozinho: ele se apresenta arquitetado em estruturas.
Para Wagner Romão, especialista em Ciência Política e professor da Unicamp, a estrutura de poder é um conjunto de instituições políticas de um país permeada pelo poder. Neste cenário, “governo é uma das formas como funcionaria em determinado momento uma estrutura liderada por um partido ou um líder eleito e seus comandados”, explica. Carlos Caressato, filósofo e sociólogo, corrobora com a ideia de Romão ao apontar a existência de estruturas à margem do Estado com sua estrutura central. “Estrutura de poder não é sinônimo de governo, pois temos inúmeras estruturas que são paralelas e inclusive lutam contra o poder vigente”, enfatiza.
Segundo Foucault, o poder, como de fato conhecemos, não existe, o que observamos são práticas ou relações de poder.E onde há poder, encontra-se resistência, ou como ele melhor definia, lugares de resistência convivendo paralelamente ao poder central. Caressato aponta a insatisfação com o governo e os problemas sociais como possíveis causas para o surgimento de estruturas paralelas. “Quando se tem um governo que não responde o anseio de toda a sociedade, surge a resistência. É um baixo clero capaz de pressionar mesmo estando fora do poder. Ou ainda, grandes corporações que elegem e fazem cair governo quando percebem que a estrutura de poder não é mais capaz de atender a seus interesses”, menciona o sociólogo.
Exemplos de estruturas à margem não faltam. A máfia, o narcotráfico e o crime organizado são apenas alguns dos citados por Romão. “Estas são práticas não necessariamente previstas nas estruturas de poder, mas que surgem à parte, como o caixa 2 em campanhas eleitorais”, pondera. As milícias no Rio de Janeiro que ditam à regra no lugar de uma corporação policial por vezes ineficiente, é um outro exemplo. Milícias, dentre as quais se destaca o PCC, comandando inclusive de dentro da própria cadeia, com regras e organização própria. “O governo tem a sua estrutura, mas as estruturas paralelas não são governos”, assinala o professor.
Diante tais exemplo, conclui-se que o poder não é nada mais do que o reflexo da parcela social responsável por organizá-lo. Ele se mantém, pois produz ideias e discursos. As práticas sociais representam ideais típicos da posição social de quem a produz.Suas ideologias e bagagens de vida interferem em suas ações. E estas são extremamente relevantes e refletem diretamente na maneira como o indivíduo age dentro de sua estrutura de poder.
Mas de onde vem?
O jurista Alysson Mascaro pondera que o poder da norma não resiste na norma, e sim nas estruturas de poder. O capital, o exército, ambos tem mais poder que a norma. A aplicação da lei depende de relações sociais. As leis mais aplicadas são aquelas que atendem aos interesses de quem detém o poder econômico, político, intelectual. A lei é jogo de força. Quem tem prestígio econômica dita as leis que serão seguidas ou não. Sem intenção de tomar partidos, ou defender quem tem culpa no cartório, será que não explica as tomadas de decisões duvidosas de nossos ministros no caso Lula? Não é essa a pauta da vez, mas fica a pergunta no ar.
Segundo Caressato, nas estruturas de poder tudo começa com a força física. A força do homem determinou a primeira hierarquia natural: um mais forte mandava e fazia com que o seu desejo fosse acatado, enquanto outro, mais fraco, subordinava-se. E assim, o estilo de vida vai sendo criado conforme o gosto dos dominantes. Diante esta constatação, a lei acaba sendo projetada por aqueles que detém o domínio e estão no poder. “Na hierarquia das leis, feita por homens, temos figuras defendendo seu próprio interesse. Quem pode, manda”, assegura o sociólogo.
Está no gene humano, inerente a ele, ser corrupto. Retomando ao relato bíblico com o qual abrimos esse texto, a rebelião do anjo acarretou sua expulsão do antigo lar, tendo em vista, que ele não mais se adaptava aquela estrutura. O homem então foi corrompido, e a partir daquele momento já nascia atolado no pecado. Envolvido pela corrupção. Sendo assim, uma estrutura de poder montada por homens não consegue servir corretamente a toda sociedade, principalmente, por vivermos em classes diferentes.
Uma elite no poder por exemplo, vai fazer de tudo para manter o seu grupo no centro do poder. O mesmo o faz governo, exército, forças armadas, grandes corporações transnacionais e inclusive, a igreja. Existe um combinado de autoproteção e tudo para atender ao jogo de interesses. Embora o cenário pareça obscuro e sem volta,Wagner Romão acredita que nem tudo está perdido. “As estruturas podem funcionar não corretamente, mas dentro dos limites”, acrescenta.
Antigo, porém atual
Hipoteticamente, tudo começou com o anjo caído. Passou pela sociedade hebreia, com uma estrutura bem engendrada: primeiro Deus, no céu e na terra protegendo o povo liberto da opressão dos egípcios, depois um sacerdote, representando Deus na terra, seguido pelo paciente Moisés, como líder daquele povo de dura cerviz, daí vem Arão, seu irmão e outros líderes, juízes, profetas e reis. De lá para cá, continuamos a visualizar estruturas oprimidas se levantando em resistência às estruturas ditatoriais.
As estruturas paralelas que vão se formando são respostas à insatisfação com a estrutura vigente. Instaura-se uma luta pela sobrevivência, pela manutenção dos privilégios. Embora o desejo inicial seja de buscar melhorias e igualdade, pode ocorrer o perigo de quando um poder paralelo chega a centralidade ele se torna bem mais violento, ríspido, tendo em vista, a violência sentida anteriormente. Caressato explica essa postura utilizando como exemplo a Revolução Francesa. Ao assumir o poder o povo vai contra o absolutismo e acaba decapitando a rainha, símbolo da opressão, violência e fome sofridas pela população. A violência é uma forma de defesa que visa a não deixar a antiga estrutura retornar e prevalecer. “O que rege a sociedade é a luta de classe. Quem está em baixo quer subir e quem está em cima não que descer”, esclarece Romão.
Muitas vezes a ruptura em determinada estrutura de poder e a consequente guinada para outra pode vir de onde menos se espera. Na verdade, o perigo quase sempre mora ao lado. Foi o que aconteceu no Chile, quando o general do exército, Augusto Pinochet, nomeado pelo próprio presidente Salvador Allende, comandou um golpe em parceria com o grande Tio Sam. O presidente? Na pressão se suicidou. O general? Aproveitando da “decisão” do outro, assumiu o controle de sua ditadura. Allende apunhalado pelo próprio “pupilo”. Em uma comparação, talvez não muito feliz, é como se Lula fosse traído por Dirceu. E o que era para ser justo, injusto se tornou diante tamanha desvalorização do sujeito. Mandou quem pode, obedeceu quem temia pela vida. E aqueles insistentes que lutaram pelos seus direitos? Fazem parte dos 3000 mortos.
Na Venezuela, por exemplo, Maduro impôs um forte controle sobre a mídia, pois sabia que a liberdade desta, poderia deixar transparecer o real problema de corrupção do país: o seu próprio governo. A semelhança da Venezuela, países como Itália, Cuba, Chile, Paraguai, Uruguai e Brasil enfrentaram a mesma realidade de governos ditatoriais que enfiaram goela abaixo suas ideologias e vontades. E por falar em mídia, qual o papel desta em meio as estruturas?
Vale a pena ver de novo
Há quem diga que a mídia na maioria das vezes trabalha a favor do poder vigente. Não cabe generalizar, obviamente, muito menos vamos nomear, mas é inegável que gigantes midiáticos ora ou outra apoiam o poder do Estado. Exemplo? A própria Globo retratou-se tempos atrás se desculpando pelo apoio à ditatura militar. O propósito disso anos depois? Fica nas entrelinhas da reflexão de cada indivíduo.
Os conglomerados midiáticos também funcionam engendrados sob uma estrutura de poder e para além disso, precisam coexistir com diversas outras estruturas e tentar inclusive ser imparciais. Para a jornalista Eliane Cantanhêde, o jornalismo não é um bloco fechado de pensamento e ainda convive diretamente com o “apurado” faro jornalístico das pessoas, principalmente nas redes sociais. “O jornalismo está cada vez mais diversificado, com televisão aberta, TV a cabo, rádios, jornais, revistas, Google, Facebook, Twitter. De certa forma, todo mundo, hoje, é um pouco jornalista, a favor e contra as estruturas de poder, num choque contínuo de posições e reflexões”, reflete.
Wagner Romão considera que a mídia tem um papel importante nas atuais democracias, tendo em vista, a sua tendência em ter um grande grau de liberdade e um expressivo poder sob a opinião das pessoas. “Ela direciona a informação produzida e por isso tem grande influência na manutenção ou derrubada do poder vigente”, acrescenta o professor. Todavia, o fato de termos uma imprensa “oligopolizada” torna-se um problema, pois poucos grupos econômicos acabam detendo parcelas substanciais do poder informativo.
Se a mídia é correta e verdadeira? Ela está inserida no poder. É uma estrutura e funciona como tal. Sendo criada e dirigida por homens, impossível ficar ilesa a corrupção. “Há corrupção em todo o mundo e em todas as estruturas, num grau maior ou menor, mas tudo o que os jornalistas profissionais escrevem e dizem está assinado, sujeito a críticas, desmentidos, correções”, salienta Eliane.
Em vários lugares, à semelhança da Venezuela, a mídia adotou uma postura precisa de um lado da moeda. Segundo Eliane, no Brasil isso não é diferente. “Pela cultura do jornalismo brasileiro, a mídia, com raras exceções, não costuma assumir uma candidatura e prefere acompanhar as campanhas de forma igual, considerados os pesos diferentes. Prefiro que seja assim, para não condicionar o trabalho dos repórteres e editores e evitar que todo mundo de um determinado veículo escreva na mesma direção, como nos EUA”, opina a jornalista.
Entendemos que as estruturas são corruptas e aceitamos que dificilmente esse cenário vai mudar. Mas porque prosseguimos? Bourdieu responde: para ele a sociedade tende a repetir suas estruturas. Na verdade, repete-se comportamentos sem saber, pois, estes são apreendidos sem muita reflexão. São interiorizados, incorporados, por meio de mecanismos inconscientes. Segundo Foucault é deste modo que a estrutura de poder e a dominação econômica e, sobretudo, simbólica é reproduzida inconscientemente.
Nesta edição do canal da imprensa, viajaremos pelas Estruturas de Poder e suas relações com a mídia. Aperte o sinto, abra sua mente e mantenha os olhos bem abertos. Com certeza ao final, à semelhança de Salomão, verás que realmente não há nada de novo debaixo da terra.