Música identitária: crítica social na obra de Luiz Gonzaga
- 5 de outubro de 2022
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- Theillyson Lima
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Como um dos mais prestigiados artistas da música brasileira fazia política com sua sanfona.
Melissa Maciel
Em meados do século XIX, despontava no Brasil a escola literária de influência francesa denominada Parnasianismo. A perspectiva desta escola era fundamentada na doutrina da arte pela arte, uma vez que, segundo seu precursor, a arte não existe para a sociedade ou para a moral, mas para si mesma. Dessa forma, uma de suas mais marcantes características era a alienação social e a busca pela exposição do belo.
Essa premissa ideológica, no entanto, não teve espaço no legado de artistas engajados com a responsabilidade política e social, entre eles, o aclamado Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Por meio de suas músicas, além de contribuir para o conhecimento nacional a respeito do povo nordestino, Gonzagão protestou sobre temas como a fome, a seca, desigualdade social, dignidade humana e outros. Temas de fundamental importância para se entender a sociedade brasileira de forma mais abrangente e humanitária.
Em entrevista ao jornal O Globo, em 1985, o cantor explicou a natureza de seu trabalho nas seguintes palavras: “Meu trabalho é político. Como sanfoneiro, faço política com minha sanfona. Minhas músicas são protestos e advertências para que os governantes olhem para o Nordeste. É preciso que o Brasil tenha consciência do que é o sertão. Através da música, nós, os sanfoneiros, tentamos falar dos problemas da nossa terra e das carências da nossa gente.”
Contexto histórico e social de sua ascensão
Análises e especiais sobre a vida do artista, revelam que até o seu aparecimento e consequente sucesso, o povo brasileiro não fazia distinção entre os habitantes das regiões Norte e Nordeste do país, todos eram genericamente tratados como “nortistas”.
No início de sua carreira como músico profissional no Rio de Janeiro, Gonzaga tocava os estilos musicais que estavam mais em alta na época, como polcas, valsas e tangos. No entanto, ao participar de um show de calouros no programa de rádio de Ary Barroso, percebeu que a música regional era muito bem recebida pelo público. Com isso, começou a assumir a identidade de um sertanejo nato em suas performances e a se tornar “a voz do sertão brasileiro.”
Vestido de cangaceiro ou de vaqueiro, trazendo, envoltos em musicalidade, os hábitos, discursos e características marcantes do homem do sertão, de sua terra e suas paisagens, Gonzaga contribuiu indiscutivelmente para a construção da identidade do povo nordestino e para a ampliação das noções de identidade nacional durante a era de prestígio do rádio.
Contudo, ele não fez isso sozinho. Para fortalecer o caráter regional de seu trabalho, procurou parcerias que o auxiliassem na composição das canções. O primeiro escolhido foi Humberto Teixeira, um advogado cearense com quem produziu, em 1947, aquela que seria a mais prestigiada música da carreira de Luiz Gonzaga, Asa Branca. No entanto, as parcerias não pararam por aí e, em seguida, Gonzaga se associou a Zé Dantas, um médico pernambucano que conhecia bem a região nordestina e, por isso, o auxiliou a explorar mais os aspectos rurais da terra em suas letras. Essa dupla produziu uma sequência de sucessos, entre eles Á-bê-cê do sertão e Xote das meninas.
Em citação ao Diário de Pernambuco, o pesquisador, escritor e compositor pernambucano Renato Phaelante, que há mais de três décadas investiga as músicas do forrozeiro, pontua: “ele cumpriu bem o seu objetivo, o seu sonho de levar para o resto do Brasil, para o Sul do país o valor, a importância do trejeito, do sotaque e do linguajar próprio do nordestino.”
Arte e responsabilidade social
Vozes da Seca foi lançada em 1953 e traz muito da realidade política entre povo e governantes: “Seu doutô os nordestino têm muita gratidão/ Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão/ Mas doutô uma esmola a um homem qui é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
Nestes versos, Zé Dantas e Gonzaga expõem a situação das esmolas ao povo em condição de pobreza, devido à seca e falta de recursos na região. Tais esmolas podem ser entendidas como as políticas de auxílio social, que como apontam os compositores, não sanam a causa do problema. Para aquele que é trabalhador e se vê sem condições de tirar sustento da sua terra, depender do dinheiro alheio para sobreviver, pode “lhe matar de vergonha”. No entanto, para outros, é muito fácil viver às custas do governo sem desenvolver-se profissionalmente para fazer a diferença onde vive, em busca de um futuro melhor. Com as esmolas, apenas se alimenta um ciclo interminável de miséria e dependência.
Além de protestar contra políticas que tentam remendar buracos ao invés de consertar o problema por completo, os autores dessa canção também propõem soluções: “Home pur nóis escuído para as rédias do pudê/ Pois doutô dos vinte estado temos oito sem chovê […] Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barrage/ Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage”. Emprego, infraestrutura, reforma tributária em favor de preços acessíveis, ou seja, dignidade humana, é por isso que este baião clama, “Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão”.
Pobreza por Pobreza é uma composição que protesta contra a exploração desenfreada e desumana da terra e da gente do sertão, e contra a falta de recursos que sustentem a manutenção da vida: “Meu sertão vai se acabando/ Nessa vida que o devora/ Pelas trilhas só se vê gente boa indo embora.”
Gonzaga destaca como o povo nativo da região, em grande medida, abandona sua terra por falta de condições de sobrevivência. No entanto, ele ilustra também a parte do povo que escolhe permanecer e perecer junto com a terra: “Meu agreste vai secando/ E com ele vou secar/ Pra que me largar no mundo se nem sei se vou chegar […] Ao menos o chão que é meu/ Meu corpo vai adubar.” A fraqueza e a falta de instrução se tornavam um empecilho à busca de uma vida digna dentro ou fora do sertão.
“Pobreza por pobreza/ Sou pobre em qualquer lugar/ A fome é a mesma fome que vem me desesperar/ E a mão é sempre a mesma que vive a me explorar.” Terra decadente, povo explorado, vida miserável, eis o retrato de uma população oprimida pelas áridas intempéries da natureza e pelo desprezo daqueles que tinham como suposto dever, a manutenção de suas vidas.
O Rei do Baião e seus aliados, no entanto, foram além das pautas sociais e abordaram também a questão ambiental em suas músicas, a produção Xote Ecológico é um exemplo disso: “Não posso respirar, não posso mais nadar/ A terra está morrendo, não dá mais pra plantar.” O árido sufoco da terra para com seus nativos, não faz com que muitos deles deixem de ter amor por seu berço. Xote Ecológico contesta esse mau trato para com o território que os compositores e grande parte do povo tanto valoriza.
Sua ousadia política não era velada, sutilmente contestou o descaso dos governantes tanto com o ambiente quanto para com os movimentos e líderes ambientalistas que buscavam a preservação de suas terras. Um exemplo disso foi a iniciativa de salientar em suas letras o assassinato do ambientalista, seringueiro e símbolo da luta pela preservação da Amazônia, Chico Mendes.“Cadê a flor que estava aqui?/ Poluição comeu/ E o peixe que é do mar?/ Poluição comeu/ E o verde onde é que está?/ Poluição comeu/ Nem o Chico Mendes sobreviveu.”
Patrimônio artístico da história brasileira
Diante de tudo isso, pode-se observar como Luiz Gonzaga do Nascimento foi um artista que decidiu pensar a arte além do óbvio. Mais do que usar o regionalismo e a cultura de seu povo para atrair fama e fortuna, o Rei do Baião decidiu fazer refletir com suas composições e expor à nação as condições de vida de um povo subjugado e oprimido. Para que se alcançasse mudança, era preciso que o restante da população brasileira tivesse consciência do que realmente se passava com essa parte do seu próprio povo. Não existe reforma sem informação e Gonzaga decidiu levar essa compreensão por meio da música.
A arte não existe para si mesma, se fosse assim seria vazia, faz parte de seu papel suprir a humanidade de recursos criativos para expor a realidade, informar, fazer refletir, incentivar o pensamento crítico e o posicionamento como cidadão de um país que precisa, urgentemente, de reformas estruturais. Gonzaga foi um exemplo disso, por isso sua obra pode ser considerada um patrimônio histórico, artístico e cultural do povo brasileiro.