Kawaii: manual prático de como se tornar asiático
- 20 de setembro de 2023
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- Theillyson Lima
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A subcultura que tornou os “newkeis” mais orientais que os próprios imigrantes.
Ana Toyota
“Você vive como você pode.
Você é quem você é.
‘Identidade’
de uma pessoa,
de uma coisa,
de um lugar.
[…]
Nós vivemos nas cidades, as cidades vivem em nós…
A vida passa.
Nós nos mudamos de uma cidade a outra
De um país a outro,
Nós mudamos de língua,
Mudamos de hábitos
Mudamos de opinião,
Mudamos de roupa,
Mudamos tudo.
Tudo muda.
E rápido…
Imagens sobretudo…” (WENDERS, W., 1989)
Quem eu sou. Quando se pensa nesse questionamento é tendencioso responder com profissão ou título social (marido, esposa, filho, cunhada). No entanto, não diz nada sobre o “eu”, mas sim sobre o seu lugar dentro da sociedade. Quem você é para os outros. A busca por uma identidade por vezes pode vir de um desejo de se reconhecer, olhar no espelho e chegar à conclusão de que as pessoas são resultado daquilo que elas assistem, das pessoas que amam, dos abraços que dão, dos livros que leem, mas em hipótese alguma de uma obsessão. Olhar para fora com a tentativa de tentar se ver acaba muitas vezes com o resultado de se perder.
A palavra japonesa Kawaii é um adjetivo japonês que em uma tradução simplificada significa “fofo”. Esse conceito que existe desde a Era Meiji no século XIX se popularizou nas últimas décadas a ponto de ser um estilo de vida adotado por países ocidentais. Uma influência cultural e ideológica tão presente que é vista como um poder indireto de um estado político, podendo se chamar em muitos aspectos de soft power.
O Kawaii que hoje não é visto mais como apenas uma palavra, adota uma experiência pessoal que envolve a exploração de conteúdo feminino e lúdico, e avança ao consumismo, estimulando a comercialização de produtos com rostinhos fofos, olhos grandes e caráter infantil. Um exemplo disso é uma das pioneiras do movimento, a Hello Kitty. Mas o que afinal tem de errado em uma cultura que propaga a fofura?
Um movimento maior do que se esperava
O Kawaii começou como uma estética criada e incentivada por artistas japoneses. Estima-se que esse estilo nasceu na Era Meiji com Takehisa Yumeji, um dos pais do movimento que veio a se tornar popular depois da Segunda Guerra Mundial. Nesse tempo, durante o século XX, foi difundida a ideia de que a cultura Kawaii foi uma tentativa do Japão de mascarar seus crimes de guerra ou surgiu com a necessidade do japonês de enfrentar os traumas da guerra, fugindo da realidade dolorosa e buscando um refúgio com conteúdo lúdico que relembrasse os prazeres da infância.
O que se sabe com exatidão é que o Kawaii apareceu em 1970 na escrita japonesa, como um estilo de escrita propagado por adolescentes e que por muito tempo foi proibido dentro das escolas, por apresentar um modelo de escrita mais arredondado e com rostinhos. Esse modelo ficou tão popular que se tornou um estilo estético presente em todo conteúdo midiático, que perdura até os dias atuais e sem uma perspectiva de fim.
A estética virou símbolo consumista no Japão, pois tudo que possuía características consideradas “fofas” vendia mais. O caráter lúdico, os olhos grandes e a feminilidade eram um atrativo que poderia ser comprado com dinheiro vivo. A partir daí, com a disseminação, o consumo do Kawaii passou a se tornar uma experiência não apenas oriental, mas propagada no mundo inteiro. O super “boom” da subcultura acertou precisamente problemas que com as características “fofas” evoluíram para um mal social maior, como a hipersexualização infantil e o fetichismo voltado aos países orientais.
O Kawaii como produto de consumo se popularizou no mundo principalmente pelo seu caráter lúdico, que traz ao telespectador a experiência da infância. Por isso, além de ser um conceito estético, o estilo se aproxima cada vez mais de uma experiência afetiva ao consumidor.
O conceito é atrativo porque faz o usuário sair do mundo real, da responsabilidade de lidar com coisas sérias, fugir da vida adulta e poder consumir algo de caráter leve, infantil e fofo. Por isso o estilo kawaii se transformou em uma nova maneira de viver e enxergar o mundo. De acordo com a historiadora da arte Roberta Lavinas em seu TCC , “o kawaii serve como um tipo de proteção contra a vida adulta, um escape junto com o desejo de voltar ou permanecer em um estado de infância”(LAVINAS, 2019, p. 15).
A subcultura que criou uma população asiática ampliada
No Brasil, a imigração japonesa começou com o primeiro navio que atracou em 1908, e desde então somos o país com maior número de japoneses fora do Japão. A cultura oriental foi tão estimada que hoje é possível encontrar termos criados para abraçar ocidentais que consomem da cultura asiática: são os chamados “newkeis”, termo que se assemelha a palavra “nikkei”, que se refere aos descendentes de imigrantes japoneses no Brasil.
“Por ser exótica para os padrões brasileiros, a prática de algo originário da cultura japonesa faz com que o indivíduo se “torne um japonês” ou se “sinta um japonês”. Alguns pesquisadores têm propagado o termo japonesidade para denominar as diversas possibilidades de qualquer indivíduo se “tornar japonês”. Interessante notar que as japonesidades podem até tornar possível que um não-descendente seja “mais japonês” do que um descendente de japoneses[9]. Com a adesão cada vez maior de não-descendentes às japonesidades, estamos vendo surgir uma “Comunidade Nipo-Brasileira Ampliada” (MACHADO, 2011; PRATA, 2010, p. 12).”
Japonesidade não foge do conceito de Orientalismo, título dado ao livro do palestino Edward Said que mostra como o Ocidente enxerga e trata as etnias não-brancas, com fetichismo e exoticidade. Com esse pretexto, o livro aborda como a opinião dos brancos sobre países do oriente varia dependendo do intuito e daquilo que convém aos ocidentais.
Assim nasce a ambiguidade do perigo amarelo, mencionado no artigo sobre newkeis e weaboos do nipo-brasileiro Gabriel Yukio, que diz: “O perigo amarelo foi construído em torno de uma ambiguidade. Poderíamos ser ruins ou bons quando melhor conviesse. Dessa forma se solidificou também o mito da minoria modelo.”
Com esse pensamento, é incoerente adotar o conceito de comunidade asiática ampliada. Como uma mulher de ascendência birracial brasileira e japonesa, é natural não se sentir parte em nenhum dos lados. A comunidade nipo-brasileira carrega uma falta de identidade que se revela no dia a dia, não somos brasileiros o suficiente para sermos chamados de brasileiros, e também não somos japoneses o suficiente para sermos chamados de japoneses.
Por isso, é frustrante encarar pessoas sem nenhum laço sanguíneo, deturpando um conceito de cultura e a partir disso se considerando “mais japoneses” do que o próprio imigrante. Esse comportamento, além de ridicularizar uma nação, utilizando uma subcultura, também foge da realidade histórica que o Japão possui.
Encarando a realidade
Conforme explicado no artigo do escritor Gabriel Yukio, o Japão está longe de ser Kawaii. O país possui crimes de guerra, um etnocídio contra a comunidade indígena do país assustador, e a imagem passada ao exterior ignora todos esses problemas políticos e sociais. A cultura japonesa vai além de mangás, doramas e culinária. Mesmo que os “newkeis” assistam todos os episódios de One Piece, Naruto ou Dragon Ball Z juntos, a identidade de ser um japonês, chinês, ou coreano não os pertence. “Não adianta não viver a diáspora e querer viver do glamour fetichista que nos rodeia”, assim, finaliza Gabriel Yukio.
Infelizmente, o conceito de identidade se perde. A obsessão é maior que o laço de sangue, e o novo orientalismo surge cada vez mais real. A dor da comunidade asiática ocidental é perceber muitas vezes que precisam da atuação de não-descendentes para manter viva uma falsa percepção de cultura. Não considero uma apropriação cultural, visto que o Japão e os países orientais vão além de culinária e desenhos kawaii, mas é a adulteração da cultura tradicional milenar que a comunidade asiática se esforça em manter ativa, mas que se apaga com a seletividade de países brancos que decidem o que é interessante e o que não convém.