“Idols virtuais”: consequências de uma sociedade exaustiva
- 20 de setembro de 2023
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- Theillyson Lima
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A junção perfeita entre entretenimento e tecnologia na verdade é bem falha e problemática.
Lucas Pazzaglini
As inovações da indústria asiática não são segredo para ninguém. A cada ano produtos únicos e exclusivos são apresentados ao público, produtos que pareciam estar distantes de se tornarem reais e impossíveis de serem feitos. Prova disso é o smartphone chinês Huawei Mate 60 Pro, que está sendo investigado pelos EUA por possuir um chip tecnologicamente avançado, chocando especialistas da indústria.
Mas não é apenas na indústria da tecnologia que o mercado asiatico surpreende. Outra grande fonte de retorno financeiro é o entretenimento, que, associado a tecnologia oferecida nos países, têm surpreendido com mudanças e reformas que tornam seu mercado único.
Mercado asiatico – mercado do futuro
Os animes fazem história há anos, sendo grandes precursores da cultura asiática. De uns anos para cá a música também tem ganhado força, com o lançamento de bandas de K-pop e artistas solo. Um dos primeiros do estilo a ter fama mundial foi o artista PSY, com o sucesso “Gangnam Style”( sim, ele é coreano), que se tornou um movimento viral.
Mas, como dito no começo do texto, a indústria asiática trabalha a partir de inovações, e uma das principais pautas da atualidade é o uso de inteligência artificial em diversas áreas da vida. Obviamente o mercado do entretenimento não perdeu tempo e já começou a trabalhar em cima dessa tecnologia, mas enquanto no ocidente a discussão toma grandes proporções, gerando protestos e greves, o mercado asiático parece ter encontrado um público sólido para essa transformação.
Nesse processo, encontramos um novo nicho: a criação de personagens virtuais que ganham fama como artistas reais.
Ideia antiga associada ao novo
Talvez chamar o estilo de “novo” possa ser um exagero, porque em 1996 o mercado já investia nesse tipo de produção. A empresa Visual Science Laboratory foi uma das grandes pioneiras lançando a “idol” – nome dado aos artistas asiáticos – Kyoko Date, que era agenciada também por uma empresa real, como se fosse humana. A artista lançou CDs e até estrelou videoclipes.
A falta de sucesso da criação foi atribuída a tecnologia da época, que não permitia uma transmissão tão completa de movimentos reais e uma animação limitada.
Mas essa preocupação não existe agora. A tecnologia permite a criação de “pessoas virtuais” com a mesma facilidade que atualizamos uma página inicial. Tudo bem, essa afirmação pode ser exagerada, mas chega a ser, no mínimo estranho, a forma que a indústria do entretenimento trata com naturalidade a invenção de artistas perfeitos.
É pra ser eterno
Uma das bandas de maior sucesso nesse modelo é a “Eternity”, que faz parte do estilo K-pop. As 11 integrantes lançaram seu primeiro single em 2021, como o nome “I’m Real” (Sou Real), apelando para a contradição e fazendo sucesso quase instantaneamente.
Todas as cantoras da girlband são geradas por computadores, fios e pixels, nenhuma delas é real.E por que isso seria um empecilho, já que manejar avatares é mais fácil do que lidar com artistas reais? A ideia da “Eternity” é ser eterna, independente dos artistas que assumem as posições principais, porque eles estão na palma da mão.
Resposta a uma cultura
A ideia por trás da criação dos “idols virtuais” é muito simples: não é preciso lidar com as limitações humanas. Não é segredo que os países asiáticos são conhecidos por sua cobrança exagerada e uma cultura de reconhecimento a partir de feitos grandiosos. Essa particularidade faz com que muitos artistas tirem a própria vida por não sentirem que estão cumprindo corretamente seu papel.
A resposta para o problema é “lógica”: criar pessoas que não sentem, não falam, não se opõem e não pensam. Esse objetivo está claro desde a Kyoko Date, lá em 1996, criada para não ter dificuldades com fuso-horários e estar sempre disponível, e se alastra até hoje.
Pode ser que você não acredite, mas a CEO da Pulse9, empresa responsável pela criação da “Eternity”, Park Jieun disse em entrevista à BBC: “A vantagem de ter artistas virtuais é que, enquanto as estrelas do K-pop muitas vezes apresentam limitações físicas, ou até mesmo com problemas de saúde mental por serem humanos, os artistas virtuais podem ser livres disso.”
Eu particularmente acho a resposta aterrorizante, uma vez que agora o ser humano pode se tornar descartável e substituível. Ao invés de tratar o problema a partir da raiz, é preferível achar uma solução em que você possa negá-lo em todas as suas formas.
Personagens virtuais estranhamente reais
É aquela velha história: homem encontra mulher, os dois se conectam, se apaixonam e se casam. Seria um plot perfeito se a mulher em questão não fosse uma cantora digital, criada pela empresa japonesa Crypton Future Media. Akihiko Kondo ficou famoso por se casar com o holograma de Hatsune Miku, a tal cantora.
Até pouco tempo Akihiko conseguia se comunicar com a “esposa” através de um Gatebox que permitia que ele interagisse com o holograma projetado pelo computador. Mas, essa função foi descontinuada, então agora ele enfrenta uma dificuldade no relacionamento.
Juntos desde 2018 toda a história é uma “red flag” gigantesca e se assemelha muito com um pedido de socorro, mas todos merecem felicidade.
Agora voltando a “Eternity”, ninguém chegou a se casar com uma das personagens, mas a própria empresa oferece a possibilidade de conversar com as idols em bate-papos ao vivo, encontros de fãs online e afins ao projetar o rosto das meninas em atores, cantores e dançarinos anônimos contratados.
Mesmo que a empresa use as diretrizes éticas de Inteligência Artificial da União Europeia e afirme sempre tentar deixar claro que são personagens fictícios, existem barreiras que não deveriam ser quebradas. Esse pensamento pode parecer limitante e retrógrado, mas tenho dificuldade em observar os relatos descritos acima e achar que está tudo bem.
Junte-se a eles
A criação desses idols representa uma preocupação para os artistas reais que se preparam a vida toda para estar em um palco. Ainda à BBC, a cantora Han Yewon, de 19 anos, conta que treinava mais de 12 horas por dia, entre exercícios vocais, dança e exercícios físicos. Se apoiar nessa inovação é desmerecer o trabalho duro de muitas pessoas em uma sociedade extremamente exaustiva.
Apesar de ser uma ameaça, existem bandas reais que já fazem o uso de personagens virtuais, como uma forma de ponte entre os dois mundos. A girlband Blackpink chegou a ganhar o primeiro prêmio da MTV de Melhor Performance no Metaverso em 2022, por ter realizado um mega show na plataforma, com ajuda das suas “representantes” online.
Existem bandas ainda que já “debutam” com suas “gêmeas virtuais”, como no caso da Aespa, formada por quatro integrantes humanas – Karina, Winter, Giselle e Ningning – e quatro avatares – ae-Karina, ae-Winter, ae-Giselle e ae-Ningning.
A ideia tem se expandido para outras frentes, como para os jogos. A Riot Games, responsável pelo sucesso League of Legends, já tem a sua própria banda virtual. A K/DA conta com vozes de cantoras reais, e nas apresentações ao vivo, elas se apresentam ao lado delas com ajuda de realidade aumentada.
A junção permite um contato maior com fãs em plataformas online, o que aproxima o público, mas a que custo?
Uma ideia de futuro
Essa realidade nos aproxima muito das histórias absurdas de filmes distópicos que pensávamos nunca se aproximar da realidade, mas em “Blade Runner 2049” – um desses filmes bizarros – o personagem principal mantém um relacionamento amoroso com um holograma, assim como nosso querido Akihiko.
O problema não vai parar por aí. Essa primeira substituição é apenas um passo, e não estou falando que a inteligência artificial vai dominar o mundo, que vai tirar o emprego de todos, nem nada disso, mas apontando que enquanto os humanos não forem tratados de forma “mais humana” a tendência é só piorar.
“Precisamos de pessoas que não sofram, não sintam, não adoeçam e não falhem”. Quem pode suprir essa expectativa? Isso mesmo, ninguém. Mas a resposta, no que agora aparenta ser em um mundo distópico, seria o cuidado. Pelo jeito é mais fácil moldar alguém do zero do que depender de quem já existe.