Hollywood e o enquadramento reducionista da cultura latina
- 16 de novembro de 2022
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- Theillyson Lima
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Por muitas décadas a representação hollywoodiana do povo latino carrega a mesma padronização negligente e preconceituosa.
Melissa Maciel
Você já assistiu um filme com a empregada doméstica que tem sotaque hispânico e é mal compreendida pelos patrões americanos ricos? Ou com a mulher latina de pele bronzeada e corpo escultural que seduziu e conquistou um americano mais velho e milionário? Ou ainda com o jovem latino que tem antecedência criminal e é envolvido com o mundo do tráfico? Pois é, estes são alguns dos estereótipos largamente veiculados pela maior indústria de padrões do mundo da mídia, que não representam o povo latino em sua pluralidade e essência.
Em seu livro “O espetáculo do outro”, o teórico cultural e sociólogo Stuart Hall, explicou que “estereótipos são usualmente direcionados contra grupos excluídos e subordinados, com o intuito de desvalorizar e reforçar uma imagem de inferioridade. A manutenção dos estereótipos é realizada para fazer com que uma determinada característica seja internalizada como identidade.”
Isso pode parecer duro, mas é esta a lógica desdenhosa do cinema norte americano. Com isso, a mídia imputa suas pré-concepções ignorantes e generalistas na construção de um imaginário sobre o povo latino, em suas telonas e telinhas.
Generalização da diversidade étnica
Os veículos de comunicação de massa são as ferramentas do século para a disseminação de ideologias e perspectivas estigmatizantes daqueles que estão no topo da pirâmide social. Uma vez que o maior mercado cinematográfico do globo está sob as asas da indústria norte-americana, e esta não faz questão de conhecer seus vizinhos de mesmo continente em sua diversidade e riqueza, é compreensível a veiculação não condizente da representação latina.
Nesse viés, o artigo acadêmico “Cinema Hollywoodiano e a Construção do Estereótipo da América Latina: a sexualização da mulher latino-americana” expõe que, dentro dessa lógica, o cinema hollywoodiano “vai usar de um discurso hegemônico estereotipado para representar determinadas culturas ‘desconhecidas’, disseminando imagens redutoras, ideias pré-concebidas, opiniões equivocadas sobre esses lugares.”
Tendo em vista que o censo nacional estadunidense considera latinos e hispânicos como um mesmo grupo étnico, é de causar indignação a tendência de colocar o norte-americano em um pedestal de superioridade. Enquanto isso, os povos dos vinte países da América Latina são enquadrados em uma mesma caixinha.
Além disso, o senso comum dominante nos Estados Unidos sustenta a ideia de que todas as pessoas de origem latina falam espanhol. O que é um equívoco historicamente ridículo, uma vez que o continente não foi colonizado apenas por povos europeus de língua hispana, como também por portugueses e franceses. Dessa forma, mesmo que o espanhol seja o idioma predominante nos países latino-americanos, a supremacia estadunidense ignora a presença de idiomas como o português, falado no maior país da América-Latina, o Brasil, e o francês falado, por exemplo, no Haiti, algumas ilhas do Caribe e na Guiana Francesa. Sem contar os idiomas nativos presentes em alguns países, e que derivam de tempos antes da colonização.
Objetificação e depreciação da mulher latina
Não é difícil de observar que existem duas grandes apresentações da mulher latina nessa vertente da mídia de massa. A moça de curvas ressaltadas, ousada e extravagante, e a mulher de mais idade, de aparência insignificante e na posição de empregada doméstica.
Outra forte concepção, é que raramente são representadas em uma classe econômica privilegiada, e se o são, é porque casaram com um homem abastado. Normalmente apresentam uma história de vida difícil, de muita luta e sofrimento. Vindas de famílias simples, alcançaram um modesto crescimento com o esforço de seu trabalho.
No longa Hot Pursuit (Perseguição Escaldante), a atriz de origem colombiana, Sofia Vergara, assume a personagem de Daniella Riva, completamente inserida no estereótipo dominante. De pele tom oliva, corpo curvilíneo ressaltado pelas roupas apertadas e reveladoras, sotaque hispânico evidente e tom exagerado ao se expressar, Daniella é a esposa de um americano mais velho e muito rico. Além disso, está envolvida com um grupo criminoso, que também envolve integrantes latinos, e matou seu marido a tiros.
Mas este não é o único papel estereotipado que a atriz assumiu. Na sitcom Modern Family, Vergara interpreta Glória, uma mulher mais uma vez extravagante em seus modos, que veio de uma vila humilde da Colômbia, batalhou trabalhando como taxista, cabeleireira, professora de filosofia para alcançar uma condição melhor, e acabou por se casar com um americano rico (mais uma vez). A partir disso, vive uma vida de madame, como dona de casa e especialista em cozinhar pratos exóticos e picantes.
Já o estereótipo da empregada latina, além de colocar as mulheres em uma posição de inferioridade em relação ao “perfeito” modelo norte-americano, também as representa de maneira humilhante ao serem usadas para a composição de cenas cômicas, principalmente por terem sotaque bem forte e não compreenderem bem o inglês.
Este cenário parece familiar? Bom, somente Lupe Ontiveros, atriz de ascendência mexicana, interpretou o papel de empregada em pelo menos 150 produções cinematográficas. Um de seus papéis, por exemplo, é o de Rosalita, no filme Os Goonies, de 1984. No longa, Ontiveros interpreta a empregada que ajuda a família Walsh a salvar sua casa e seu bairro.
E quanto ao Brasil?
Você já ouviu falar que para os países nórdicos do continente americano, o Brasil é o país do futebol, carnaval e Floresta Amazônica? Bom, a representação brasileira em Hollywood parece confirmar esse estereótipo.
A série Gilmore Girls conta a história ficcional de uma mãe solteira e sua filha, enfrentando as mais diversas dificuldades no processo de introdução da jovem à vida adulta. No primeiro episódio da primeira temporada da série, a senhora Patty, professora de dança da pequena cidade em que as protagonistas moram, menciona o Brasil em uma situação bem específica. Quando suas alunas decidem tirar a roupa do balé, ela exclama: “Não, fiquem com as malhas. Aqui não é o Brasil.” Aparentemente, a imagem que se tem é de que o Brasil é o país da bagunça e das mulheres seminuas.
Mas se isso não foi convincente o bastante, analisemos uma das sequências cinematográficas mais aclamadas de alguns anos atrás: a Saga Crepúsculo. No último filme da saga, quando Bella e Edward reuniram vampiros de toda parte do mundo para ajudá-los no dilema central do longa, integraram a equipe duas vampiras brasileiras chegadas diretamente da Amazônia, supostamente indígenas da tribo Ticuna. Com feições mais afro-brasileiras do que de indígenas e interpretadas por atrizes não brasileiras.
O que parece, é que para essa grande indústria segregacionista, o povo brasileiro não é primeiramente visto como civilizado ou modernizado, mas adepto, principalmente, à bagunça e a um estilo de vida selvagem.
Maiores que estereótipos
Diante de toda essa representação enviesada, é essencial ressaltar a imensa diversidade cultural que compõe a América Latina. São vinte países que, apesar de manifestarem características em comum, apresentam músicas, festas regionais, tradições e a própria língua, com particularidades muito próprias de cada nação.
Uma comprovação dessa riqueza imaterial foi a aprovação, em 2003, da Convenção da UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) desta região do planeta. Além disso, segundo o site oficial do Somos Íbero-América, esta é uma das poucas regiões do mundo com um plano para reconhecer, proteger e salvaguardar o patrimônio cultural, com ações concretas em difusão, educação e preservação do legado cultural.
Nesse viés, é um desrespeito com a pluralidade humanitária desta parte do mundo ainda sermos representados por padrões tão limitados e ignorantes. Não há povo superior a outro, a mentalidade de supremacia dos produtores norte-americanos sobre os povos com quem dividem o continente é claramente preconceituosa e a indiferença com relação a conhecer-nos melhor para nos representar de maneira digna, é revoltante.
Somos muito mais que estereótipos, muito mais do que estes veiculadores de padrões acham que sabem sobre nós. Ser latino significa poder contribuir com muitos talentos e peculiaridades que poderiam ser muito melhor explorados se o estadunidense não estivesse tão centrado no próprio umbigo.