O Folclore Invisível
- 12 de maio de 2021
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Cidade Invisível traz folclore brasileiro como plano de fundo para trama policial
Damáris Gonçalves
Para quem cresceu lendo e assistindo as obras de Monteiro Lobato, a série Cidade Invisível serviu como gatilho nostálgico da infância. Os personagens clássicos do Sítio do Pica-Pau Amarelo agora compõem o catálogo da gigante do streaming, trazendo uma abordagem crítica às discussões quanto ao folclore brasileiro. A produção da Netflix conta a história do policial ambiental Eric Alves (Marco Pigossi) que investiga a morte misteriosa de sua esposa Gabriela (Julia Konrad). Em sua busca por respostas, Eric descobre a existência e envolvimento de entidades folclóricas na morte de Gabriela. As descobertas do policial o fazem questionar tudo que julgava ser real e fantasia.
O título “Cidade Invisível” já traz uma provocação clara ao público. Trata-se da crítica ao esquecimento de personagens icônicos na cultura brasileira. A série os retrata como personalidades marginalizadas e esquecidas pelo próprio folclore. Cuca, Iara, Curupira, Saci-Pererê e o Tutu Marambá vivem à margem da sociedade, se escondendo nas favelas do Rio de Janeiro, invisíveis a qualquer um. Embora estejam em segundo plano na percepção de quem assiste, as discussões percebidas por Eric trazem um choque de realidade, tanto ao protagonista, quanto ao espectador.
O cético e a altruísta
O protagonista e sua esposa representam dois paralelos fundamentais para a proposta do programa. Eric traz o estereótipo do policial cético e dedicado, enquanto Gabriela é a altruísta protetora do meio ambiente e das raízes de seu povo. A jornada da ativista traz uma pessoa preocupada com a preservação de sua história, bem como com a proteção das entidades esquecidas. Ao contrário de Gabriela, Eric se contenta com o natural e visível, desconsiderando qualquer alternativa sobrenatural. Por isso, a morte de sua esposa o desafia, propondo outras possibilidades.
A ignorância de Eric quanto às crenças ao seu redor, refere-se à negligência do povo brasileiro em relação à sua própria origem e aos personagens que fizeram parte dela. Nos flashbacks do policial, Gabriela tenta repetidas vezes trazê-lo para a realidade e cultura do povo ribeirinho em seus cuidados, entretanto, ele as recusa. Afinal, há coisas mais importantes no mundo do que um povo paralelo.
Conforme a narrativa se desenrola, Eric percebe que está mais ligado às entidades folclóricas do que julgava possível. Por ser filho do Boto-Rosa (Victor Sparapane), sua origem é uma consequência direta da relação entre o natural e o sobrenatural, do real e do folclore. Este paralelo remete ao abandono que o povo brasileiro cometeu quanto às histórias e culturas que, literalmente, fizeram parte de sua origem. Lendas que sobreviveram à colonização e catequização caem no esquecimento,tornando-se invisíveis.
Gabriela vem como contraste. Trata-se da personificação do “ideal” brasileiro. Aquela que estuda sobre seu passado, cuida do presente e protege o seu futuro. A personagem ensina sua filha a fim de inseri-la na cultura do Brasil, ou seja, faz questão que sua descendência entenda o valor do folclore.
Ambos aprendem e desenvolvem uma familiaridade quanto ao folclore brasileiro, bem como a importância do lugar que vivem e protegem. No entanto, Eric precisa ser questionado, indagado e instigado a aprender. Não muito diferente do Brasil como um todo.
O Brasileiro Internacional
Cidade Invisível relembrou o público brasileiro das histórias que ouviam na infância e dos episódios envolventes do Sítio do Picapau Amarelo. A série expôs a dificuldade do povo brasileiro em valorizar a história nacional, principalmente o folclore, ou seja, as lendas que inspiram a sua cultura do Brasil. A supervalorização das fantasias estrangeiras ofusca a atenção das lendas contadas de geração em geração pelos nossos antepassados.
O que torna as “entidades” invisíveis à sociedade é a negligência à sua importância e o exagero na presença das mitologias de outros países e culturas. O problema não está, necessariamente, na influência estrangeira, tampouco na presença dela no Brasil, mas sim no enaltecimento de um e na diminuição do outro. O thriller policial age como plano de fundo para a luta pela visibilidade e espaço do folclore na cultura brasileira.
A questão levantada em Cidade Invisível não está na “realidade” dos personagens folclóricos, nem sequer na veracidade dos eventos. Trata-se do desleixo no que diz respeito à cultura entrelaçada à história do Brasil. É sobre valorizar as lendas contadas pelos pais do Brasil e por aqueles que lutaram pela sobrevivência da cultura.