Elis Regina: 46 anos depois, ainda somos os mesmos
- 5 de outubro de 2022
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- Theillyson Lima
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Mais que uma cantora, Elis Regina permanece como uma das artistas com a melhor interpretação política em suas músicas.
Mariana Santos
Se uma pessoa comum é capaz de se comunicar com facilidade por diferentes meios, os artistas ultrapassam quaisquer limites estabelecidos pela sabedoria humana. É quase como um superpoder o que cantores e compositores brasileiros conseguem fazer com o pouco que lhes é oferecido. Mesmo quando falta incentivo, falta espaço e liberdade, até mesmo durante os anos sombrios de censura, os grandes artistas brasileiros nunca se calaram. De certa forma, essa é a história de Elis Regina, uma cantora que não dependia apenas da música para se manifestar.
Os anos em que Elis viveu, e cantou, foram marcados pela “atenção especial” do governo para com artistas que possuíam alguma relevância nacional. De fato, alguns dos maiores compositores do Brasil foram forjados pela censura e encontraram diferentes meios para burlar a perseguição governamental. Foram utilizadas verdadeiras estratégias de guerra, desde analogias, jogos de palavras e recursos literários, até recursos mais subjetivos como a interpretação que une corpo, voz e coração.
Elis possui um sem número de músicas que tratam com seriedade assuntos de cunho social e político. Com letras profundas sobre o racismo, violência doméstica e desigualdade social, a cantora não se absteve do posicionamento tão cobrado pelo público que a acompanhava, contudo, mesmo sendo constantemente assediada pelo governo, seus esforços não pareciam suficientes para a esquerda brasileira.
Tempos diferentes, problemas iguais
Antes de explicar melhor as múltiplas frentes insatisfeitas com o desempenho de Elis, é importante mencionar as músicas as quais me refiro, afinal, são as manifestações mais explícitas do que a cantora considerava em seu íntimo. Começando por “A banca do distinto“, que escarnece da vaidade de ricos racistas, as letras cantadas por Elis levantaram pautas que são defendidas até os dias atuais.
“Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho”. Os três primeiros versos da música já descrevem o perfil do indivíduo criticado pela obra. O “doutor” como é chamado por Elis, representa uma parte cruelmente grande da aristocracia brasileira, contudo, o aviso é dado: “mais alto o coqueiro, maior é o tombo do tonto, afinal todo mundo é igual quando o tombo termina, com terra por cima e na horizontal”.
A letra dispensa explicações, mesmo assim o que dá a ênfase necessária para a música é a interpretação debochada da cantora, que fala como se estivesse olhando para seu interlocutor enquanto ridiculariza seu posicionamento. É graças a essa incrível performance que Elis Regina poderia cantar uma canção de roda em forma de protesto. A mesma letra cantada sem os recursos que brotam do íntimo de Elis nunca teria o mesmo impacto.
A música “Bodas de Prata” conta dos inúteis esforços de uma mulher casada que se sente aprisionada em um relacionamento abusivo. A voz de Elis transparece o medo de uma esposa que aguarda o marido bêbado e infiel chegar em casa no meio da noite. A música diz: “você fica deitada com medo do escuro, ouvindo bater no ouvido o coração descompassado. É o tempo, Maria, te comendo feito traça, num vestido de noivado”. Elis canta com tanta emoção que naturalmente levanta suspeitas do quanto a cantora se identifica com o que fala. Certamente a personalidade é uma arma de força inestimável no meio artístico.
Críticas dos dois lados
A história de Elis Regina é marcada por um episódio contraditório em diversos aspectos, incluindo a data do acontecimento. Existe uma confusão que não consegue determinar se Elis foi convidada a cantar nas Olimpíadas do Exército (1972) ou no Encontro Cívico Nacional (1969), contudo, basta mencionar o caráter obrigatório do convite para perceber que se tratava de uma demonstração de poder do Estado.
Apesar da falta de opção, Elis Regina foi rechaçada pela “patrulha” da esquerda, que esperava que a cantora se posicionasse de forma mais enfática. O efeito da fiscalização foi tanto que na música “Manifesto” Elis declara que sua vida “se tornou uma enorme agitação”. Utilizando jargões característicos da política, a composição conta uma história de amor que se mistura com a relação entre a cantora e sua música.
Para explicar melhor a complexa relação da música com a política é necessário um olhar mais atento aos detalhes da letra. O primeiro verso diz: “a minha música não traz mensagem e não faz chantagem ou guerra fria, e nem fala em ideologia. Eu vim apenas para lhes falar de uma grande perda que eu nem sei se é da direita ou da esquerda.”
Os termos parecem brincar com a percepção do ouvinte, uma vez que Elis não especifica do que ela está falando. Enquanto às vezes parece que a canção se refere à uma desilusão amorosa, em determinados momentos Elis dá a entender que estaria falando da sua carreira como cantora.
No trecho “e o que m’importa se a censura corta, pois eu gosto dela se é vermelha ou se é verde e amarela. Ó camarada, companheiro, amigo, ela foi embora e, o pior, que foi contigo!”, não é possível dizer se o “eu lírico” se refere à uma mulher ou à própria carreira, pois de que maneira a censura poderia interferir em um relacionamento? E como alguém poderia “levar embora” a carreira de alguém?
Ainda mais atual
De todas as músicas interpretadas por Elis Regina, talvez uma das mais emblemáticas seja “Como Nossos Pais“, que carrega uma quantidade imensa de emoção em tom de protesto. Com regravações de diversos artistas ativistas da atualidade, sem dúvida a versão de Elis permanece como a favorita, principalmente pela força e revolta observadas ao longo dos quatro minutos declarados.
Por mais que toda a letra discorra sobre o envolvimento dos jovens em questões políticas, o trecho que mais destaca o momento em que o jovem se decepciona com a (falta de) seriedade dos movimentos sociais é quando Elis fala: “hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal”, referenciando aqueles que lucram com causas sociais sem se envolverem de fato.
O cenário descrito por Elis Regina, tanto em “Como nossos pais” quanto nas demais composições, se assemelha em muitos aspectos com a realidade que vivemos hoje. Sobretudo, infelizmente, “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.”