Misoginia e a militância da arte
- 22 de março de 2017
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- Thamires Mattos
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Limitadas a papéis coadjuvantes, subestimadas intelectualmente, fragilizadas conceitualmente, idealizadas/objetificadas fisicamente, violadas sexualmente, enfim, estamos “engaioladas” desde tempos imemoriais.
Andréia Moura, editora-chefe do Canal da Imprensa
Uma das capacidades mais transformadoras da arte é seu poder de promover equidade. Frente a uma obra de arte todos nos tornamos iguais. Pobres, ricos, brancos, pretos, amarelos, homens, mulheres, velhos ou jovens, na arte tais classificações sobram. Pela arte podemos nos tornar vozes ativas, podemos ouvir a diversidade de vozes. Ela é dialógica, é livre, é militante. A arte é a língua da subversão e o local onde compreensão e troca podem libertar-se de todas as barreiras culturalmente impostas, de toda violência simbolicamente exercida.
Sei que meu texto, em cada edição, tem a missão de introduzi-los nos conteúdos que nossa revista tratará durante a quinzena. Embora pretenda fazer isto de forma breve (ainda nestas linhas), desta vez também quero tecer uma reflexão sobre alguns trabalhos. Produtos que, mesmo pertencendo ao universo das Belas Artes, considero midiáticos. Independentemente de quão anteriores são ao próprio conceito de mídia. A arte, além de todo o mais, também é mídia.
A constante em todos os textos desta edição é cruel e indisfarçável: somos uma espécie formatada para um interminável exercício de misoginia. Quem poderia datar a primeira manifestação de superioridade e menosprezo dirigida a uma mulher? Como poderíamos identificar o caso “0” desta epidemia? A violência de gênero nasce, praticamente, junto com a humanidade. Somos violentadas, real e simbolicamente, desde que mundo é mundo. Limitadas a papéis coadjuvantes, subestimadas intelectualmente, fragilizadas conceitualmente, idealizadas/objetificadas fisicamente, violadas sexualmente, enfim, estamos “engaioladas” desde tempos imemoriais. Um mal – dói-me reconhecer – presente em todas as culturas, em todas as épocas.
Uma importante questão a ser entendida, neste contexto, é ainda o fato de que a repetição deste comportamento de menosprezo resulta, também, de uma violência simbólica exercida sobre o próprio homem. Sim! Eles também são violentados simbolicamente pela mídia e pelas instituições (família, religião, educação). São doutrinados a este comportamento opressor. E mais, um doutrinamento sorrateiro, silencioso, perpetrado e reproduzido sem que suas vítimas se deem conta. É impossível para mim esquecer quantos de meus alunos, por exemplo, (jovens mentes do século XXI) me perguntaram com total sinceridade de coração: isto é machismo? Isto é misoginia?
A luta pelo fim deste comportamento abusivo e por uma visão mais respeitosa/digna em relação a nosso gênero também não é recente. Não podemos reduzir a busca pela igualdade de direitos entre os gêneros aos primórdios do movimento feminista, em meados do século passado. Gosto de dizer que tal luta é tão imemorial quanto sua causa. O “feminino”, através dos séculos, nunca se prestou obedientemente a esta submissão. Em todas as culturas, em todas as épocas, mulheres tentaram subverter suas condições restritivas impostas socialmente. Mais que subverter tais circunstâncias, algumas destas mulheres (por meio de suas vidas e trabalhos) buscaram tornar a situação de opressão vivida uma pauta digna de debate e reflexão. Umas poucas, ainda mais ousadas, gritaram a “plenos pulmões” contra a violência dirigida a seu gênero.
A estas ousadias extraordinárias é que dedico meu texto. Quero, ou melhor, preciso falar com vocês a respeito dos trabalhos de Artemísia Gentileschi. Uma maravilhosa mulher do século XVII, uma resiliente. Artemísia, italiana nascida em 1593, foi filha de um importante pintor barroco (Orazio Gentilleschi) além de ser uma talentosa artista. Sua capacidade como pintora era tão impressionante que foi a primeira mulher a ser aceita na Academia de Belas Artes da Florença.
Aos 17 anos, Artemísia foi vítima de um estupro perpetrado por um estudante e jovem pintor que frequentava o ateliê de seu pai. Ele a atacou na privacidade de sua casa onde, com autorização de Orazio, o rapaz circulava livremente. A pintora demorou um ano para ter coragem de denunciar seu agressor e expor sua “ruína” à sociedade da época. Foi obrigada a descrever o ato publicamente, frente a um juízo, e teve que suportar acusações de seu agressor que cuspia o velho discurso: “a culpa foi sua”. O pior de tudo foi aceitar a pena dada ao estuprador que se resumiu ao exílio de Roma, apenas.
Ela, ao contrário, precisou aguentar o desprezo e a indiferença da sociedade pelo resto de sua vida. Teve muitas de suas obras atribuídas a seu pai ou outros colegas de profissão e submeteu-se a um casamento de conveniência para salvar as aparências. Ainda assim, resistiu. Sua obra, que desde a tenra idade já tinha certo teor “feminista”, passou então a tratar brutalmente do tema. Ela foi responsável por pintar dezenas de cenas, mitológicas e bíblicas, em que mulheres vítimas de abuso retribuíam o “favor” a seus agressores. Seu quadro mais famoso, “Judite decapitando Holofernes”, é considerado por alguns uma representação de ódio e vingança contra o “masculino”.
Nunca acreditei que seus trabalhos se resumissem a isto. O teor de sua obra é muito mais profundo. Antes mesmo do estupro, Artemísia já havia subvertido, em favor de seu gênero, outros relatos bíblicos apócrifos. Exemplo é o quadro abaixo, referente à história de Susana e seus abusadores. Na imagem, ao contrário da visão frívola e coquete atribuída à personagem por outros pintores, Artemísia retrata uma mulher assustada, vulnerável. Uma “denúncia” da situação desprotegida e desigual do “feminino” na história.
A arte de Artemísia, absolutamente ousada, extraordinária para sua época, mais que dedicar-se ao sentimento do ódio e vingança, representa um “grito a plenos pulmões” contra a violência de gênero atemporal e indesculpável. Pela própria experiência ela sabia que um discurso de protesto jamais teria espaço no “sistema”. Seu único recurso era a arte. Na arte, ela encontrou sua voz e se fez voz de muitas. Na arte, sua mensagem, sua luta se tornaram imortais e repercutem 400 anos depois na causa que agora é nossa.
Artemísia entendeu, como mulher empoderada que foi, que seu dever era encontrar caminhos por onde disseminar importantes verdades. O fato, por exemplo, de que somos criados iguais, independentemente de nosso gênero, mas que ainda assim, o mundo nos trata (as mulheres) com desigualdade, desrespeito. Somos violadas e desconsideradas. O fato de que não devemos nos calar frente a tal situação. Precisamos nos reconhecer como merecedoras do direito inato à igualdade e utilizar toda alternativa possível para gritar isto ao mundo, conscientizar e empoderar nossas iguais.
O trabalho desta impressionante mulher sempre me traz à mente um texto escrito por J. R. R. Tolkien. Na passagem, (pertencente ao segundo volume da saga de “O Senhor dos Anéis”), o rei Theoden se vê encurralado pelo exército inimigo. Guerreiros violentos e desesperados por sangue e destruição. Frente a uma aparentemente “insolúvel” situação, que resultaria no extermínio de seu povo, ele pergunta: “que podem os homens fazer contra um ódio tão intenso”? Como resposta, um de seus aliados, Aragorn, diz: “cavalgue ao encontro deles”.
Parafraseio. “Que podem as mulheres fazer contra uma violência (real e simbólica) tão antiga e intensa”? Respondo. Nós cavalgamos ao encontro dela. Como Artemísia fez. Com nossas vidas, trabalhos, com nossa influência, nossa arte. No ensino, no lazer. É preciso conscientizar jovens mulheres, é preciso lutar por mais empoderamento nesta geração. É preciso escrever edições de revistas sobre o tema. Enfim, com ousadia extraordinária, este assunto precisa ser colocado em pauta por todos os meios possíveis.