Donas de si
- 22 de março de 2017
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- Thamires Mattos
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Nasce uma nova concepção da Amélia, aquela versão de mulher ideal criada e cantada por Mario Lago. Lugar de mulher é onde ela deseja estar. Seja campo de futebol, escritório ou cozinha. As possibilidades são tão infinitas quanto as variedades de beleza
Emanuely Miranda
Amélia pode ter cabelo crespo
Nenhuma das bonecas dispostas na cama se assemelhava aquilo que Lia Castro encontrava no espelho. Todas eram brancas, olhos claros, cabelo liso. Ela era negra, olhos tão escuros quanto sua pele, cabelo crespo. Enquanto encarava seu reflexo, a menina chorava pois não se achava em conformidade com o padrão de beleza imposto culturalmente. Antes de dormir, no auge de sua inocência, pedia em oração para que, por um milagre, acordasse parecida com a Barbie no dia seguinte.
Além das paredes do quarto de Lia, essas figuras com características físicas distantes da garota negra monopolizavam os personagens na televisão. No fim da década de 1990 e meados da década seguinte, para mais da metade da população, não havia representação ampla e adequada. Segundo dados do IBGE, divulgados em 2014, 53,6% dos brasileiros são negros, entretanto, a principal emissora de televisão do país só foi exibir uma novela com protagonista dessa classe em 2004.
Antes disso, até houve participação negra nos folhetins, mas os papeis que lhes cabiam eram majoritariamente restritivos. “As personagens que me representavam estavam sempre lavando prato, varrendo a casa ou sendo completamente sexualizadas”, observa a estudante universitária. Dessa forma, ainda criança, Lia foi doutrinada a respeito de si mesma. “Eu olhava para as representações e pensava que aquelas eram as minhas únicas opções na vida”, confessa.
Em virtude do doutrinamento recebido, ela não se achava bonita e suspeitava quando alguém lhe dirigia elogios. Desde cedo, foi acostumada a se diminuir diante dos outros. “O garoto mais bonito do colégio me pediu em namoro e eu não aceitei porque fiquei com medo de ser tudo mentira”, relembra. Em outras ocasiões, os rapazes tentavam escondê-la da família e amigos por terem vergonha de namorar alguém com traços afrodescendentes. Ela, por sua vez, tentava amenizar os traços físicos que trazia no corpo para ser aceita e se aceitar. Aos seis anos de idade, alisou o cabelo pela primeira vez.
A socióloga Andréa Serrão identifica uma situação nociva às pessoas que, como Lia, não conseguem adentrar ou permanecer no pressuposto de perfeição. “Se o modelo de beleza, de ‘normalidade’ não pode ser atingido ou mantido, problemas são desencadeados e incidem sobre o modo como essa mulher se relaciona com o outro e a forma como ela mesmo se percebe”, aponta.
Lia não se percebia como era de fato, recusava suas origens e empreendia esforço para se encaixar nos estereótipos impostos por sua cultura ocidental. O empenho inexitoso suscitou um princípio de depressão na pré-adolescência.
O psicólogo Breno Rostolato caracteriza a imposição de um estereótipo ideal como uma das arbitrariedades de um sistema machista e opressor. De acordo com ele, a sociedade está cheia de modelos fiados e fictícios que restringem as legitimidades de cada um. “A felicidade é múltipla e plural assim como nossas identidades”, enfatiza.
A jornalista Mayara Luma estudou a trajetória do feminino na imprensa nacional. Ela corrobora o pensamento de Rostolato. “Se pensamos na produção de uma revista, existem várias técnicas de iluminação e correção de imagem, ou seja, estamos sempre atrás de um padrão irreal”, expõe. As mulheres das capas não existem e, portanto, não faz sentido imitá-las. Segundo Mayara, a inalcançabilidade dos protótipos gera um ciclo de frustração pois há um sentimento de invisibilidade gerado naquelas que não são representadas.
Rostolato afirma que a mulher tem que ser do jeito que se reconhecer. O contrário disso tende à escravidão balizada em uma concepção meramente fenotípica, conforme apontado por Andréa. A socióloga ainda explica que o arquétipo eurocêntrico restringe a noção do belo à loiras magras de pele alva com estatura alongada.
Exausta, Lia Castro se desprendeu da obrigatoriedade de ser quem não era. O espelho, outrora inimigo, foi usado a favor de seu empoderamento. Diante de seu reflexo, a menina nascida e criada em Salvador passou a sorrir. Ficou conhecido também o cabelo crespo da moça que forçava o liso.
“Você é bonita”, repetia como um mantra.
“Você não precisa ficar alisando o cabelo porque eles querem que você o faça”, continuava.
As frases reprisadas continuamente surtiram efeito. Há sete anos, Lia vive um processo de empoderamento, porém reconhece que ainda precisa percorrer um longo caminho pois o feminino está submetido ao sofrimento das exigências estéticas. A mídia reforça os requisitos de beleza através de seus produtos. Lia vai na contramão do senso comum e enfrenta as premissas mediáticas com sua melhor arma: a autoestima. “Sou linda”, resume sua vitória após anos de luta em oposição ao racismo e machismo.
Amélia não é de ninguém
Além da imposição de estereótipos, o corpo feminino está sujeito à objetificação. As opiniões que o circundam costumam resumi-lo à posse de alguém. No imaginário coletivo, trata-se de um objeto cuja única função está relacionada ao desejo do possuidor. Mayara descreve a objetificação com um processo de coisificação que reduz a mulher. “Ela não importa como sujeito. Trata-se de um ser que vai atender as vontades do outro”, observa. A jornalista ainda acrescenta que, quando a mídia prega essa ideia, acaba alimentando uma cultura machista tornando difícil o interrompimento deste ciclo imposto por séculos.
Andréa, complementa ao apontar que as nuances assumidas pela objetificação na atualidade ganham cada vez mais espaço à medida que a mulher conquista a possibilidade de permanecer no cenário público, seja pelo direito alcançado de votar e ser votada ou pela luta de condições para desempenho do emprego e desenvolvimento de uma carreira, por exemplo. “Tragicamente percebemos que, a cada passo dado pelas mulheres rumo às formas de emancipação social, dois passos são dados por uma cultura machista, patriarcal e androcêntrica”, lamenta. Há uma tentativa de reduzi-las ao âmbito privado-doméstico, no entanto, diante da frustração desse propósito, a sociedade cria mecanismos de deslegitimação da posição pública por elas conquistada.
Amélia não se resume a um corpinho bonito
Uma das formas de deslegitimação é a erotização do feminino. A mulher abastece um fetiche. As propagandas se valem das curvas femininas para movimentar segmentos. Em comerciais televisivos de marcas de cerveja, modelos são expostas para atrair o público masculino. Recentemente, uma empresa de móveis apostou na mesma jogada de marketing.
Os exemplos avançam: durante o período carnavalesco, nota-se uma superexposição dos corpos das mulheres nas emissoras. Uma delas destina uma vinheta exclusivamente para a dança de uma moça seminua. “Os meios de comunicação reforçam os estereótipos da mulher como agente alegórica unicamente direcionada para satisfação sexual do homem”, comenta Andrea. Como se não bastasse, frequentemente, a mulher recebe a culpa pela tentação causada no sexo oposto. A mesma sociedade que procura despir a mulher é aquela que lhe repreende por não ter se vestido com decência e, consequentemente, causado o próprio estupro.
Para a socióloga, o tratamento oferecido à mulher como instrumento de prazer advém do período da colonização. As nativas foram vítimas dos abusos cometidos pelos europeus recém-chegados. Esse costume se integrou à cultura local e os veículos de comunicação foram um dos agentes responsáveis por perpetuá-lo. “A espetacularização dos corpos femininos é um enredo de destaque sempre explorado pela mídia televisiva e que mais uma vez tenta minorar a participação da mulher a questões de ordem lúdico-alegóricas”, critica. Reduzidas e subestimadas, a atuação relevante desempenhada por elas fica suplantada.
Exemplo disso ocorreu em outubro do ano passado durante a finalização de um debate político transmitido pela Rede Tv. Marcelo Crivela, um dos candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro e posteriormente vencedor das eleições, finalizou sua participação no embate com um comentário nefasto. “Eu quero agradecer a você, Mariana, e dizer que esse sucesso todo é por causa de vocês. Com certeza, a beleza de vocês encantou os telespectadores e a todos”, disse em referência às duas apresentadoras.
A jornalista Mariana Godoy ironizou às palavras de Crivela. Ela reagiu com um aceno de miss, visto que sua beleza fora exaltada, ao passo que sua competência profissional fora desqualificada.
Maria da Penha fecha com Amélia
Todo objeto pode ser descartável. A pessoa objetificada padece da mesma sina. Esse princípio fomenta comportamentos agressivos e engrossa as estatísticas de violência doméstica. No Brasil, de acordo com pesquisa do Instituto Avon em parceria com o Data Popular, três a cada cinco mulheres já sofreram algum tipo de violência em relacionamentos.
Marineia Farias consta entre as mulheres que fazem parte desses dados. A governanta foi agredida pelo marido durante dez anos. Ela se sente desconfortável para relembrar sua história, mas comenta que não é a única que passou por essa situação. “Uma amiga, por exemplo, suportou agressões por mais de duas décadas”, relata.
Outro caso é o de Jaqueline Fernandes, funcionária pública, que sofreu tentativa de lesão física por parte do ex-marido. “Ele colocou ácido em dois vidros de garrafa que eu tomava, nas minhas roupas íntimas e produtos de higiene pessoal”, elenca. Jaqueline só descobriu a violação quando colocou uma das peças e sentiu sua pele pinicando.
Esses relatos são corriqueiros e universais. Em terras marroquinas, um programa de televisão ensinou recentemente como esconder hematomas oriundos da violência doméstica. A emissora que o transmite reconheceu a falha cometida e pediu desculpas.
Felizmente, a tolerância para com esses atos tem sido reduzida. Em 2016, a Central de Atendimento à Mulher registrou um aumento de 221% no número de denúncias. Andréa nota uma maior posição de contestação e não passivização cultural. Rostolato, por sua vez, diz que essas mudanças surgiram a partir de discussões relevantes, mas acusa o Brasil de ser um país lento na modificação de mentalidades. Tudo que conseguimos até aqui poderia ter chegado mais cedo.
Amélia joga futebol
Retardado ou não, o emergente engajamento das mulheres foge ao esperado e estipulado para elas. Espera-se um comportamento doméstico e recatado com interesse voltado para assuntos do lar, além de afinidade com temas que envolvem estética e moda. A mulher que extrapola o previsível causa estranhamento naqueles que a cercam.
O primeiro dos estranhamentos que Alanna Basílio causou ocorreu em seu aniversário de quatro anos. Entre tantos presentes, inúmeras bonecas. Todavia, foi a bola de futebol que fez seus olhos cor de mel brilharem. Os “brinquedos de menina” foram deixados de lado e substituídos por joelhos ralados e gols cada vez mais frequentes.
Sua habilidade foi desenvolvida aos poucos, na proporção em que as oportunidades surgiam. Inicialmente, seu pai era o único incentivador. Ângelo Basílio levava a filha para acompanha-lo em peladas, mas ela sempre ficava de escanteio pelo fato de ser garota. A menina pedia para jogar e os pedidos eram, em sua maioria, ignorados. Vez ou outra, angariava alguma participação por pena.
Alanna começou a aproveitar as brechas de piedade. “Para ser reconhecida, eu não podia fazer corpo mole quando diziam que eu ia me machucar. Além de não demonstrar fraqueza, eu precisava ser melhor ou igual aos meninos”, admite. Pressionada, ela treinava para não ficar aquém dos outros jogadores.
A despeito de seus esforços, sempre era obrigada a escutar deméritos. Seu desempenho era questionado por rapazes que afirmavam ter pegado leve com ela por causa de seu gênero. Às vezes achavam que Alanna era lésbica sem levar em conta que a opção sexual de uma pessoa nada tem a ver com suas demais preferências. Em outros momentos, a chamavam de menina macho ou então falavam que ela jogava como homem. Sua performance nunca era reconhecida como deveria.
Hoje, Alanna cursa Educação Física e mesmo após dezessete anos desde a primeira bola que ganhou, o machismo continua sendo seu principal oponente dentro e fora do campo. “Futebol é coisa de homem? Primeiramente, quem definiu essa divisão? O feminino precisa ser belo e delicado enquanto o homem pode ser físico e explosivo?”, questiona.
A jovem acredita que estes conceitos estão enraizados e até mesmo um comentário aparentemente positivo se configura como discurso machista. Os preconceitos travestem-se de elogios. “Reeducar é muito mais difícil do que educar”, acredita. A reeducação implica em um postura de enfrentamento contra tudo o que foi dito até agora.
Rostolato observa que as falas preconceituosas e seculares derivam da falta de percepção. Isso ocorre devido ao sistema de dominação vigente. “O patriarcado é uma força tão sedimentada que cria paradigmas”, reflete. O psicólogo parafraseia Foucault ao dizer que todo poder cria saberes. O machismo espalha inúmeras crenças equivocadas.
Por sua vez, as mulheres empoderadas e engajadas podem renovar tudo que foi sabido a respeito delas até hoje. Lugar de mulher é onde ela deseja estar. Seja campo de futebol, escritório ou cozinha. As possibilidades são tão infinitas quanto as variedades de beleza. Cada qual com seu jeito, sem pertencer a ninguém. Todas são donas de si.