Déja vu?
- 24 de outubro de 2016
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- Thamires Mattos
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A imparcialidade é uma falácia, mas isso não justifica a falta de dignidade do maior canal de televisão do país, o descaso com o telespectador, o desrespeito com o leitor
Sabryna Ferreira
Convido você, caríssimo (a) leitor (a), a entrar neste túnel do tempo comigo e viajar para a nebulosa época onde (também) não houve democracia no Brasil. Sente-se no sofá e ligue a TV na Globo, como a maioria dos brazucas fazia. Vai ser rápido, eu prometo.
“Em 1964, direto do túnel do tempo”
É bem verdade que naquele tempo não havia voto direto, mas democracia, no sentido etimológico da palavra (“governo em que o povo exerce a soberania”, segundo o Google), também não existe até hoje. E por isso a pergunta incessante do Trovador Solitário ainda ecoa nas mentes tupiniquins: que país é esse?
Em 31 de março de 1964, Jango foi deposto da presidência do Brasil pelos militares. E o jornal O Globo, existente desde 1925, foi um dos veículos a divulgar a notícia tenebrosa com uma certa naturalidade. A manchete do dia 2 de abril dizia: “fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida. Empossado Mazzilli na presidência”. No dia 4 de abril, “Eleição imediata ao presidente: Castelo Branco e Eurico Dutra considerados mais prováveis”. Mas a mais tragicômica veio só no dia 6, com o título “O Brasil põe suas esperanças na coesão das Forças Armadas”.
Quem quiser, pode acessar o site“http://memoria.oglobo.globo.com”e ver a série de outras manchetes dessa natureza – se pagar, é claro. Quem não quiser gastar seu dinheiro com isso, pode forçar um pouco as vistas, como eu fiz, que dá para decodificar as letrinhas.Isso já torna bem irônico o fato de o grupo tê-las “disposto” ali. Mas o site foi ao ar sob a justificativa de “revisitar sua história (do jornal O Globo) com um olhar crítico”, segundo o afamado William Bonner. Trocando em miúdos, foram dez meses de trabalho naquela plataforma para que a emissora pudesse, finalmente, se remir da mancha que o apoio ao golpe de 1964 deixou. E nem precisava disso, o brasileiro tem memória curta.
Na TV
O Jornal Nacional estreou no dia 1º de setembro de 1969. Dez dias depois, minha mãe nasceu. Cinco anos e seis meses antes, uma ditadura militar se instaurou no país. O jovem JN, a exemplo do irmão mais velho, o impresso O Globo, também cobriu o fato – ou melhor, encobriu.A minha mãe era só um bebê, e meus avós estavam em algum lugar, provavelmente sem TV, perdendo o maior escândalo da história da política brasileira, até ali.
Teve gente apanhando dos “milicos” em manifestações. Teve “esquadrão da morte” caçando subversivo. Teve resistência. Teve tortura. Exílio. Morte, choro e ranger de dentes do povo brasileiro. Sim. Teve. Mas isso não foi parar nas reportagens do JN, e se foi, a história passou por “adequações” impostas pela censura, também é preciso ressaltar.Isso pode explicar o fato de só haver uma reportagem no Memória Globo sobre a ditadura (http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/telejornais/jornal-nacional/lei-da-anistia-e-volta-dos-exilados.htm.). Nela, os quatro presos políticos de Recife, agora em liberdade, comemoram com “uma noite sem dormir, bebendo cerveja”.
No entanto, Globo e governo não eram inimigos e aquela foi uma bela oportunidade para estreitar os laços. Afinal de contas, quem não quer beber no camarote do dono da festa? Só que a bebida servida era sangue, e a música era grito de tortura. A emissora entrou na dança sem levar em conta a responsabilidade social que pressupõe o Jornalismo. E quando lhe foi conveniente, voltou atrás e se desculpou com palavras bonitas, num site muito bem diagramado que deve ter custado horrores.
Para um jornalista tão influente, um empresário tão bem sucedido, um homem tão bem relacionado, faltou Roberto Marinho conhecer a Microfísica do Poder, de Foucault – que era apenas 22 anos mais jovem, e portanto, contemporâneo. Talvez uma tarde de conversa entre os dois tivesse incentivado o presidente da emissora a se unir ao povo na resistência, e não aos militares, na opressão. Um pouco de consideração pela Mãe Gentil e seus filhos teria evitado esse passado obscuro de que a própria Globo se arrepende agora.
A imparcialidade é uma falácia, eu sei, mas isso não justifica a falta de dignidade do maior canal de televisão do país, o descaso com o telespectador, o desrespeito com o leitor. Essa questão vai muito além de interesses particulares e sobrevivência no mercado. Isso é sobre convicções e princípios que, como podemos perceber, a Globo ainda não tem. E eu me refiro a princípios humanos mesmo. Enquanto houver jornalismo por lucro e não por amor e para o bem do receptor, o Brasil inteiro não poderá contar com a mídia como aliada.
E de volta a 2016, paira o sentimento de que eu já vi isso antes. Presidente sendo destituído de sua posição sem um eleitor sequer ir à urna. Mídia maquiando os fatos sem dar uma chance ao público de ponderar sobre o ocorrido. Digo “sinto que já vi isso” metaforicamente, é claro. Nem cheguei aos 20 e já faz 31 que esse pesadelo acabou. Seguimos em frente (?) e já estamos em outro. Quero só ver como vai ser o próximo apologize da Globo. Citando Renato Russo mais uma vez, eu o parafraseio: em vez de luz, só vejo tiroteio no fim desse túnel.