De volta para o Caso Evandro
- 23 de agosto de 2022
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Quando o jornalismo precisa se redimir pelos erros do passado.
Mariana Santos
Nos anos 90 o estado do Paraná vivia um período de grande preocupação com a segurança das crianças. Não é possível determinar se houve um aumento de casos de sequestro ou se as famílias começaram a reportar os desaparecimentos nesta época, de qualquer forma casos como o do menino Evandro entraram para a história e para o imaginário popular.
No dia 6 de abril de 1992, o pequeno Evandro estava com sua mãe no trabalho e disse a ela que voltaria para buscar um videogame em casa. Na hora do almoço, a mãe do menino de seis anos de idade percebeu que ele nunca havia chegado em casa, pois seu videogame estava no mesmo lugar da noite anterior. É a partir daqui que a história fica cada vez pior.
O corpo de Evandro foi encontrado, cinco dias depois, sem as mãos, cabelos e vísceras, completamente irreconhecível. A família e a polícia somente chegaram à conclusão de que se tratava do corpo de Evandro graças às roupas e objetos pessoais que foram encontrados próximos ao menino. As suspeitas eram de um “culto satânico”.
A investigação
Diógenes Caetano dos Santos Filho, primo do menino que era frequentemente chamado de tio por causa da diferença de idade, se apresentava como porta-voz da família de Evandro. Desde o primeiro dia, Diógenes se fez ouvir pelos policiais designados para o caso, influenciando diretamente as linhas de investigação para uma criança já morta, mesmo durante a busca por Evandro. Era como se ele já soubesse, ou pelo menos imaginasse, que o menino nunca mais seria visto com vida.
Em vários momentos Diógenes pareceu induzir propositalmente as investigações para prejudicar a imagem de Celina e Beatriz Abagge (esposa e filha do então prefeito) dizendo que ambas estavam envolvidas em rituais de “magia negra”. O que teria levantado suspeitas sobre as Abagge seria a proximidade de Beatriz com Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula, homens conhecidos como “pais de santo” na cidade.
Ao perceber que suas queixas não estavam sendo atendidas pelos investigadores (Grupo Tigre), Diógenes foi até Curitiba pedir que o Ministério Público interviesse nas investigações. Assim, o Grupo Águia, da polícia militar, iniciou uma investigação paralela. No dia 3 de julho, após o registro de confissão dos dois investigados e das Abagge, sete pessoas foram presas, incluindo o artesão Davi dos Santos, um vizinho de Osvaldo chamado Francisco Cristofolini e Airton Bardelli, o gerente da serraria que teria sido usada para o “sacrifício” de Evandro.
A cobertura do caso
Após a suposta confissão, surgiram matérias em diversos jornais tentando explicar a simbologia do ritual. O jornal Tribuna do Paraná, por exemplo, veiculou uma matéria no dia 7 de julho com o título “Revolta contra os bruxos assassinos” e tentou explicar um conjunto de coincidências (pouco fundamentadas) chamado de “mistério do número 7”.
De acordo com a matéria: “Foram 7 os matadores de Evandro porque 7 eram as linhas de satã a serem seguidas pelos integrantes da seita. O crime também aconteceu no dia 7 e 7 milhões de cruzeiros foram destinados ao ‘pai de santo’, Osvaldo, que comandou toda a operação. (…) E por fim, o nome da vítima, Evandro, era composto por 7 letras”.
O Jornal Diário Popular também anunciou “A Confissão dos Satânicos“, o apedrejamento da casa dos Abagge e tornou muito óbvio para análises atuais o quão pouco se sabia sobre religiões de matriz africana. O preconceito era tanto que divindades da umbanda e do candomblé eram frequentemente chamadas de demônios pelos jornalistas.
Inconsistências na investigação
Ao falar sobre as investigações é necessário ressaltar que nenhum dos dois grupos policiais era especializado em investigação de homicídios, além disso, a polícia militar sequer deveria ter sido envolvida no caso, já que esse tipo de situação é responsabilidade da polícia civil.
Havia diversas inconsistências nas versões escritas dos depoimentos e nas confissões gravadas. No próprio vídeo de confissão de Osvaldo Marcineiro, por exemplo, é possível escutar barulho de pessoas, um telefone e sons não identificados que posteriormente foram relacionados à tortura, mas o enquadramento da câmera impede que qualquer destas coisas seja vista além do investigado. Além disso, no vídeo de confissão de Davi dos Santos é possível perceber que ele estava com algodão no ouvido e todos os vídeos de confissão possuem cortes, sendo claramente editados.
Tanto Celina quanto Beatriz Abagge alegaram ter confessado após serem torturadas, dando um motivo para os misteriosos cortes nas fitas de confissão. Poucas pessoas acreditaram, ou deram importância, para as alegações dos investigados. Contudo, algumas matérias foram produzidas falando sobre as inconsistências do caso.
A Folha de Londrina publicou em 1993 uma entrevista feita com as Abagge na qual as mulheres alegam ter sido torturadas, entretanto, não houve uma grande comoção entorno da situação das investigadas. O jornal Gazeta do Povo de agosto de 1994 menciona que as mutilações descritas na confissão que não conferiam com as lesões encontradas no corpo e também afirmou que duas importantes figuras da Igreja Católica declararam acreditar na inocência dos acusados, entretanto, o efeito sobre a popularidade das Abagge foi inexpressivo.
Os julgamentos
Os acusados foram divididos em três processos diferentes, apesar de terem sido julgados pelo mesmo caso. No primeiro grupo estavam Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos e Vicente de Paula, que ficaram conhecidos como “os pais de santo”, o segundo grupo era formado por Beatriz e Celina Abagge, as chamadas “bruxas”, e o terceiro grupo era o dos “ajudantes”, Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli.
Beatriz e Celina foram inocentadas em 1998, no julgamento que ficou conhecido como o mais longo da história da Justiça Brasileira. Na ocasião, a defesa apresentou uma fita em que se podia ouvir uma voz dizendo ao fundo “confesse direitinho que nós não lhe pomos a mão.” Posteriormente o júri foi cancelado, o julgamento de Celina prescreveu, graças a sua idade, e Beatriz foi condenada a 21 anos de prisão em um julgamento de 2011. A filha do prefeito não cumpriu pena pois recebeu um indulto presidencial.
O grupo dos “pais de santo” foi julgado em 1999 em um júri que não chegou ao fim e condenado em 2004, enquanto os “ajudantes” Sérgio Cristofolini e Airton Bardelli foram inocentados em 2005. Vicente de Paula, inclusive, morreu na prisão.
As matérias que se referiam ao caso, mesmo em 2011, continuaram usando termos racistas como “magia negra” e relacionando religiões afro-brasileiras a rituais de sacrifício. Não houve um trabalho de jornalismo investigativo com o objetivo de precisar o que houve com Evandro, pelo contrário, a imprensa usou o jornalismo declaratório para reforçar os erros cometidos na investigação dos anos 90.
Somente em 2016 uma nova entrevista, semelhante a de 1993, foi realizada com Beatriz e Celina Abagge, nela Beatriz relatou: “Choque elétrico, afogamento, fui violentada. O choque elétrico é terrível, só quem passa sabe. Tenho marcas no meu corpo. Na verdade, não confessei nada. Só repeti o que me mandavam repetir.”
Impactos na atualidade
Em 2018, estreou a quarta temporada do podcast Projeto Humanos, tendo como tema o Caso Evandro. Ivan Mizanzuk produziu 36 episódios, todos com mais de uma hora de duração, dando atenção para cada aspecto do caso. Ivan fez o trabalho de jornalismo investigativo que deveria ter sido feito em 1992, e isso se torna ainda mais impressionante considerando que ele sequer possui formação em jornalismo.
Ao ser entrevistado no podcast Inteligência Ltda, Ivan afirma que é necessário um ceticismo maior ao entrevistar, pois a pessoa pode estar enganada mesmo que não tenha a intenção de mentir. Além disso, Ivan acredita que o imaginário sobre tortura, que é alimentado pelos filmes, pode atrapalhar julgamentos sérios. “Você precisa ter noção que aquilo é ficção e as pessoas não têm, pior, policiais não têm [noção]”, afirma Mizanzuk.
Após o podcast ganhar popularidade, em 2022, o Governo do Paraná emitiu um pedido de desculpas oficial para Beatriz Abagge. Diógenes, “tio” de Evandro que não acreditava na inocência dos acusados, participou de um transmissão ao vivo no Facebook criticando a postura do Governo e reafirmando sua crença na culpa de Beatriz, o que resultou em um processo por difamação e calúnia.
O caso virou “do avesso”, com acusados sendo absolvidos de suas sentenças e o acusador respondendo judicialmente. Não é possível voltar atrás nos erros cometidos pela imprensa no passado, mas sem dúvidas trazer o caso à tona novamente proporciona aprendizados claros do que não deve ser feito. De fato, com os recentes esforços relacionados ao caso, pode-se dizer que muito se fez para redimir o jornalismo dos anos 90, contudo, nada se sabe sobre quem matou Evandro.