De escravos a ícones
- 13 de outubro de 2015
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- Thamires Mattos
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Preconceito “à brasileira” é a tônica das telenovelas. Espetacularizar o negro é apenas mais uma forma de inferiorização.
Thamires Mattos
Escravos, considerados menos inteligentes que animais: essa era a visão do Brasil Imperial sobre os negros que, até 1888, foram tratados como “burros de carga” por seus ditos proprietários. A ideia de que uma pessoa pode ser comprada e totalmente controlada por outro indivíduo de classe social mais elevada parece absurda no século XXI. No entanto, esse conceito era amplamente aceito nos latifúndios brasileiros durante o período escravocrata.
A televisão brasileira sempre procurou, através da ficção, reforçar a imbecilidade desse pensamento. Novelas que retratam os escravos negros sofrendo por causa do preconceito e ignorância dos brancos ocuparam nossas telinhas aos montes. São exemplos: Sinhá Moça em 1986 e 2006, O Quinto dos Infernos (2002), Força de um Desejo (1999), Pacto de Sangue (1989) e Abolição (1989). Contudo, os grandes marcos na telenovela brasileira foram “Xica da Silva”, produzida pela extinta TV Manchete entre 1996 e 1997, e a trama da Globo mais traduzida até hoje, “A escrava Isaura”. As duas deixaram músicas na cabeça da população (“Xica da, Xica da, Xica da Silva” e “Lerê, lerê…”) e inovaram ao introduzir protagonistas de fibra. Isaura, uma escrava mestiça, foi interpretada por Lucélia Santos. Seu “senhor”, Leôncio, se apaixona por ela e se nega a alforriá-la. Já Taís Araújo foi Xica, uma escrava perspicaz e atrevida. Ela conquistou um marido rico e sua carta de alforria, além de escandalizar a sociedade da época com seus trunfos.
No entanto, a igualdade entre negros e brancos nas novelas é ponto de discussão. A maioria dos personagens afrodescendentes tem o perfil de “sofredores”, controlados por outros, corruptos e até mesmo hilários. Como exemplo, temos a recente “Cobras e Lagartos” (2007), de Walcyr Carrasco. Um dos protagonistas da trama é Foguinho, um pobre que aspira à riqueza. Interpretado por Lázaro Ramos, o rapaz é o legítimo trambiqueiro. Passa a perna no melhor amigo para conseguir uma herança milionária. Mais uma vez, a atriz Taís Araújo faz parte do elenco. Interpreta Ellen, mulher vigarista de Foguinho. Filha de um motorista e de uma empregada doméstica, ela repele os desejos honestos de Foguinho, que quer contar a verdade sobre a origem de sua fortuna.
A imagem do negro como oportunista começou a ser desmanchada apenas recentemente, em novelas como “Geração Brasil”, que tinha Ramos no papel de Brian Benson, um superdotado formado na Universidade de Harvard, e Luís Miranda como Dorothy Benson, uma transgênero que, além de ser a mãe devota de Brian, preza pela finesse no comportamento, boas relações públicas e tem a plena confiança de Pamela Parker Marra, uma das protagonistas da trama. Os toques cômicos no comportamento dos Bensons se mostraram cativantes. Na mesma novela, Taís Araújo é uma jornalista freelancer que conquista o coração de Jonas Marra, marido de Pamela.
Taís e Lázaro são casados fora das telas, e, dentro delas, conquistaram a atenção de escritores e do público. Ela interpretou Preta, protagonista de “Da Cor do Pecado”, par romântico de Paco, um rico jovem interpretado por Reynaldo Gianechinni. Também foi a primeira “Helena” de Manoel Carlos a ter pele negra (Viver a Vida, 2009), enquanto ele interpretou, em Insensato Coração (2011) o primeiro galã protagonista negro do Brasil. O índice de aceitação da novela chegou a 70%. O casal não parou por aí: Mister Brau, série da Globo lançada em setembro de 2015, traz Ramos e Araújo como protagonistas. Brau (Ramos) é um cantor nascido no subúrbio do Rio de Janeiro com reconhecimento internacional e fortuna acumulada. Michelle, sua mulher e empresária, também é bailarina e modelo. Mesmo com todo o poder e dinheiro que tem, o casal sofre preconceito. No primeiro episódio da série, Brau resolve fazer uma surpresa para a esposa: a mudança para o condomínio de luxo Mountain Hill. O detalhe crucial é que tudo isso acontece de madrugada, já que os dois preferem viver de maneira mais livre que a “altíssima sociedade”. Os vizinhos do condomínio acreditam que o barulho na casa recém-ocupada vem de invasores. Quanto entram no recinto, encontram o casal de artistas na piscina, desfrutando do luxo e conforto. O clima de tensão é evidente.
Apesar da mudança gradual no estereótipo do negro em telenovelas, é seguro afirmar que a maioria dos personagens afrodescendentes não desfrutam das mesmas condições privilegiadas de Brau e Michelle. Ao contrário, a maior parte é alvo de “preconceito à brasileira” – opressão inconsciente.