Chamas do passado, fogo do presente
- 25 de setembro de 2024
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- Theillyson Lima
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Um paralelo entre o documentário Amazônia em Chamas de 1994 e o fogo das queimadas que afetam o Brasil nos últimos meses.
Julia Viana
O documentário Amazônia em Chamas (1994), dirigido por John Frankenheimer, tornou-se um marco para a conscientização ambiental global. Inspirado nos eventos que culminaram na morte do ativista ambiental Chico Mendes, o filme retrata a luta entre seringueiros, grandes latifundiários e madeireiros na floresta amazônica, expondo as práticas de desmatamento, grilagem de terras e o impacto destrutivo dessas atividades na maior floresta tropical do planeta. Ao revisitarmos a obra à luz dos eventos contemporâneos, como as queimadas que assolam regiões no Brasil neste semestre, o contraste entre ficção documental e realidade é, no mínimo, perturbador.
Frankenheimer, conhecido por seu talento em criar narrativas que dialogam com questões sociais e políticas, constroi um enredo que, embora dramatizado, carrega um peso documental intenso. O foco principal do filme é a luta de Chico Mendes, o líder sindical que se tornou um símbolo global da preservação ambiental, e seu martírio em prol da defesa da floresta.
O filme se desenrola num contexto de crescente internacionalização da causa ambiental e das pressões sobre governos para combater a devastação. A Amazônia dos anos 80 era um símbolo de destruição iminente, e o documentário Amazônia em Chamas desempenhou um papel importante em colocar essas questões no centro das discussões mundiais.
Conexões com o presente
Chico Mendes é apresentado como um herói trágico na produção. Ele era um seringueiro que, a partir de sua própria experiência, percebeu que a preservação da floresta e o uso sustentável dos recursos eram o único caminho para garantir o futuro de sua comunidade.
O filme mostra como ele mobilizou as comunidades locais para resistir ao desmatamento, organizando “empates”, uma forma de resistência pacífica que envolvia seringueiros formando uma barreira humana contra o avanço dos tratores. Essa imagem, apesar de idealizada no filme, reflete uma realidade brutal da luta desigual entre os defensores da floresta e aqueles que buscavam explorá-la de forma predatória.
Hoje a situação, infelizmente, não é muito diferente. Embora o ativismo ambiental tenha crescido em escala global e local, a devastação das florestas continua. As queimadas que estão acontecendo em São Paulo, estão afetando não apenas a área rural, mas também zonas urbanas, são um reflexo de políticas falhas de gestão ambiental e da pressão contínua sobre os ecossistemas naturais.
Diferente da narrativa do filme, no entanto, o contexto atual carrega a complexidade adicional da mudança climática. Se nos anos 80 e 90 as queimadas eram causadas principalmente por práticas agrícolas insustentáveis e o avanço de fazendas de gado, hoje essas práticas são exacerbadas por um clima cada vez mais instável, com secas prolongadas e ondas de calor recordes.
O ciclo sem fim
No longa, as cenas que retratam a floresta sendo engolida pelo fogo são chocantes, e na época, serviram como um alerta para o mundo sobre as consequências irreversíveis desse processo. No entanto, o documentário parece focar principalmente nos vilões humanos da destruição: os fazendeiros, madeireiros e políticos coniventes. Embora essa seja uma parte importante da equação, a realidade de 2024 apresenta uma camada adicional de complexidade, pois a própria dinâmica do desmatamento mudou.
Nos dias atuais, as queimadas são vistas como parte de um ciclo contínuo de destruição, também agravado pela mudança climática. A temporada de incêndios se intensificou em muitas regiões do Brasil e o fogo, que antes era uma ferramenta controlada de manejo da terra, agora se espalha de forma imprevisível. São Paulo, que tradicionalmente não era uma região afetada por grandes incêndios florestais, enfrenta problemas sérios, com nuvens de fumaça cobrindo a capital e regiões metropolitanas. Essa nova realidade escancara a fragilidade dos esforços de preservação.
Em 1994, quando Amazônia em Chamas foi lançado, ainda havia uma crença subjacente de que a conscientização e políticas internacionais poderiam frear o desmatamento e as queimadas. Mas o contexto atual sugere que, apesar dos avanços em termos de leis ambientais e mobilizações, o problema persiste e, em muitos casos, se intensificou. As queimadas deste ano em São Paulo, que resultaram em dezenas de cidades cobertas por fumaça, remetem diretamente às cenas desoladoras do documentário, criando uma triste continuidade entre passado e presente.
Governança e conflitos políticos
Outro aspecto central encontrado nos dois contextos apresentados é a questão da governança, no qual é possível observar um um sistema que favorece o grande capital, ignorando as vozes daqueles que dependem da floresta para sobreviver. Chico Mendes é apresentado como uma figura que luta contra a corrupção institucionalizada e a ganância desenfreada. Seu assassinato, retratado de forma brutal no filme, representa o ápice dessa luta entre forças desiguais.
Dessa forma os conflitos de interesse se mostram mais escancarados, mostrando que, por um lado, existem pressões internas e internacionais para que o Brasil proteja seus biomas, incluindo a Amazônia e o Cerrado, que são fundamentais para a regulação do clima. Por outro, há interesses econômicos, sobretudo do agronegócio, que ainda considera a expansão de terras cultiváveis como prioridade. Embora a conscientização ambiental tenha crescido, as divisões políticas continuam a dificultar uma solução efetiva para o problema das queimadas. A exemplo de 1994, hoje também há uma narrativa de heróis e vilões, mas a complexidade é muito maior, com governos enfrentando crises econômicas, sociais e ambientais simultaneamente.
A mudança de perspectiva
Se em 1994 Amazônia em Chamas foi uma das principais ferramentas de conscientização ambiental para o grande público, em 2024 o cenário midiático mudou radicalmente. Hoje, a cobertura das queimadas é amplamente disseminada por redes sociais, com vídeos, imagens e informações circulando em tempo real. Isso trouxe maior visibilidade ao problema, mas também desafios, como a desinformação e a manipulação de narrativas.
Enquanto a produção de Frankenheimer buscava sensibilizar a audiência através de uma narrativa cinematográfica, as redes sociais hoje oferecem uma multiplicidade de perspectivas, nem sempre baseadas em fatos. Essa mudança no ecossistema midiático impacta a forma como o público percebe a questão das queimadas. Se por um lado há mais acesso à informação, por outro, a fragmentação da mídia dificulta a construção de uma narrativa coesa e efetiva que promova ações concretas.
O fogo que ameaçava consumir os ambientes rurais persiste, agora alimentado por uma combinação de interesses econômicos, ineficácia política e crises climáticas globais. O documentário de John Frankenheimer continua sendo um marco importante na história da conscientização ambiental, mas os eventos atuais revelam que as questões abordadas no filme estão longe de serem resolvidas. As chamas que continuam a destruir o Brasil, são um lembrete doloroso de que, apesar de todo o progresso nas últimas décadas, a batalha pela preservação desses ambientes está longe de ser vencida