Cancelamento: o reflexo da natureza humana
- 29 de março de 2021
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O cancelamento se originou juntamente com a humanidade e seu desenvolvimento na história é notável
Isabela Vitória
“Não me exijam coerência, não tenho resposta na boca para todas as perguntas. Sou um artista, portanto meu processo é um processo dialético entre o fluxo do inconsciente e minha razão dialética. Assim, posso mudar a qualquer momento”, já dizia Glauber Rocha, ator, cineasta e escritor brasileiro, desviando dos ataques de cancelamento na década de 60.
Parece atual, mas o cancelamento tem suas origens muito antes de mim e de você, caro leitor. Ele pode ser considerado quase como uma qualidade natural do ser humano. “O cancelamento é um fenômeno cultural que não se pode entender a origem”, comenta Thauan Santana, graduado em história e professor no Colégio Adventista da Bahia. Ele explica que na Roma Antiga, os romanos cancelavam todos os indivíduos que não tinham uma matriz romana, ou seja, que não fossem de origem romana. A esses cancelados, era colocado o nome de bárbaros. E assim também fizeram os gregos, rejeitando os imigrantes ou os senhores feudais, rejeitando seus servos. “Percebemos então que o cancelamento inicialmente não estava ligado às atitudes do indivíduo, e sim, a questão social e cultural da época” complementa.
Porém, como a sociedade se desenvolve em tradição, pensamento e tecnologia, tudo aquilo que permanece como fenômeno social, acaba por se adequar ao contexto criado. O cancelamento, hoje, carrega pesos e medidas diferentes do passado. Agora, se camufla entre lutas por igualdade e o extermínio do mal no mundo. Mas que, grande parte das vezes acaba por desencadear movimentos que incitam a humilhação pública e o ódio.
O sociólogo Paulo Celso resume o fenômeno em uma frase simples: “cancelamento é a imposição de grupos que querem fazer valer apenas a sua ideia.” Já que, para ele, “nós, as pessoas, não somos coerentes.” O cancelamento é tolice, pois o fato de sermos humanos, nos permite errar.
De acordo com o Jornalista Ricardo Alexandre, em entrevista ao G1, no Brasil, o cancelamento público iniciou com o cantor Wilson Simonal, conhecido pelo seu swing e músicas dançantes. Ele comenta que na época o artista foi condenado por sequestro e extorsão e, por isso, as pessoas pararam de consumir suas músicas e de considerar suas produções. Ele também diz que essas pessoas eram chamadas de “patrulha ideológica.” Ricardo também nos lembra de casos como o da banda The Beatles, quando foi cancelada após John Lennon afirmar que eram mais populares que Jesus Cristo.
O termo Cancelamento
Seu conceito é muito antigo, porém, o título surgiu faz pouco tempo. Em 2017, o movimento #metoo, que é uma mobilização de vítimas de abuso sexual, ganhou grande visibilidade devido às denúncias feitas em Hollywood. Assim, a palavra “cancelamento” começou a ser usada como uma forma de identificar esse tipo de queixas, que consistem na exposição pública de uma pessoa que não recebeu justiça pelas suas devidas ações de depravação moral e física.
Infelizmente, o cancelamento tomou outros rumos, desviando-se da busca pela justiça e se aproximando da busca pela sociedade perfeita e da reafirmação pessoal.
Disfarçado de boa intenção, o cancelamento ataca pessoas e destrói carreiras pelos pequenos e grandes erros morais. “A cultura do cancelamento não tem necessariamente a ver com o artista. Tem a ver com a minha necessidade de me exibir a partir do erro do artista”, comenta o jornalista Ricardo Alexandre. Essa é uma ideia muito popular dentro dos conceitos do cancelamento, que o descreve como uma ação que visa a reafirmação das boas qualidades do cancelador em cima do erro de uma pessoa pública, e não dos defeitos da vítima em si.
“A origem do cancelamento está diretamente ligada ao comportamento do indivíduo. É perceptível que vivemos em uma sociedade onde somos constantemente observados. Quando compreendemos esse fato, isso reflete muito em nossas atitudes.”, relata Thauan Santana. Sendo assim, o cancelamento deixa de ser um alívio para a sociedade e torna-se um fardo devido ao medo constante da desaprovação.
O que surpreende nesse fenômeno é que todo aquele que age no ataque, também pode tornar a ser a vítima, em um curto espaço de tempo. Isso porque não há nada que estabeleça com clareza o que é de fato certo ou errado dentro do cancelamento ou suscetível de ataque. Geralmente, as críticas surgem após alguma fala ou atitudes que demonstram ideias contrárias às do cancelador, ou até problematizações sociais.
O sociólogo Paulo Celso também comenta que “toda época acha que está vivendo um divisor de águas”. Nós, no entanto, vivemos a época da desconstrução social, e essa é a principal pauta dos ataques. Por vezes são situações atuais, por vezes tuítes publicados há 10 anos. Qualquer migalha que reflita uma vida sem “desconstrução” expõe o indivíduo ao bombardeamento de haters.
A origem do cancelamento somos nós. No passado, seu motivo era status social, hoje, é sobre pessoas que ainda baseiam suas atitudes e julgamentos em um sistema de divisão de classes, raças e gêneros, mas o foco sempre esteve centrado na perfeição inalcançável. Seja uma busca por melhora, ou mesmo reafirmação pessoal.
Paulo Celso nos lembra: “Talvez devêssemos perguntar se o cancelamento é importante ou não para a melhora da pessoa cancelada” e Thauan, complementa: “você pode estar pensando aí que o cancelado é somente aquele que fere outro indivíduo, não! O cancelado também pode ser o indivíduo que pensa diferente de você. Talvez sua ideia contrária ao outro indivíduo seja um motivo de cancelamento também.”