Cancelamento: a culpa é da arte
- 29 de março de 2021
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O consumo de arte na era do cancelamento
Bruna Moledo
Não é novidade que o homem sempre quis fazer justiça com as próprias mãos. Essa vontade é retratada nas histórias em quadrinhos por meio de heróis que combatem seus inimigos sem a ajuda da polícia ou governo. Mas o cenário mudou com a chegada da internet e das redes sociais. A utopia vira realidade com a cultura do cancelamento. A população passa, então, a possuir o poder de destruir outra pessoa ou a sua carreira e reputação, com apenas um clique.
Mas a questão muda de ângulo quando o cancelado é um artista, escritor ou produtor do seu conteúdo preferido. O questionamento criado em razão das circunstâncias é: a arte também deve ser cancelada, se o artista for meu ídolo? Ao que parece, fica a critério das pessoas desenhar uma linha na areia e decidir o limite da penalidade. Alguns diriam que as consequências devem seguir conforme a gravidade dos atos cometidos. Isso é um precedente para a continuidade do consumo de conteúdos feitos por artistas que não cometeram uma gafe tão grave assim. Outros pensam que qualquer forma de arte originada nesse contexto também deve ser banida.
Hogwarts deixa a desejar
Entre diversos acontecimentos, controvérsias e opiniões, destaca-se o caso de J.K. Rowling, famosa escritora britânica. É difícil encontrar algum jovem ou adolescente que não tenha crescido com influências do universo mágico de Harry Potter. A história do bruxinho está presente em livros, filmes, teatros e até em um parque temático na Disney, nos Estados Unidos. Com milhares de fãs ao redor do mundo, Rowling era considerada uma “fada sensata”, termo utilizado na internet para aqueles que agradam o público com seu modo de pensar e agir.
No entanto, tudo mudou quando a autora foi acusada de transfobia (preconceito ou discriminação contra pessoas transgênero). Pode-se imaginar a reação de uma geração marcada por essa saga literária ao deparar-se com comentários preconceituosos, emitidos por ela em suas redes sociais. O feitiço virou contra o feiticeiro. Rowling sentiu na pele os efeitos que a internet, terra de ninguém, pode causar aos distraídos. Ao emitir suas opiniões polêmicas sobre o assunto, ela se colocou na mira de milhares de pessoas dispostas a garantir que a justiça fosse feita.
No meio do fogo cruzado, surge a grande dúvida: o que fazer com os livros tão amados e ao mesmo tempo escritos por Rowling? Dois lados de uma moeda, dois pensamentos distintos. A saga literária passa a ser a protagonista principal do enfrentamento e, ao redor do mundo, fãs precisam decidir que bandeira hastear.
Ler ou não ler, eis a questão
Mas o caso de Rowling não é o único. Ao longo dos anos, mais e mais artistas tiveram seus pecados expostos no confessionário público e digital, também chamado de internet. No final de 2020, o escritor e youtuber Fred Elboni foi acusado de agressão por sua ex-namorada. A acusação reverberou e gerou protestos on-line. A reclamação chegou com uma proposta de boicote ao próximo livro do autor, que ainda seria publicado. A editora foi pressionada, e o lançamento da obra adiado.
Além de os casos demonstrarem o poder dos internautas, também evidenciam uma sociedade constantemente preocupada com os erros e acertos alheios. Na era de Big Brother Brasil, onde todos são vigiados, é raro encontrar quem não expresse opiniões e críticas a respeito da vida do próximo. Mas também não se pode tirar o mérito de uma geração tão decidida a pensar por si própria. Essa geração também é incapaz de aceitar a violência e preconceito, muitas vezes ignorados por outras gerações quando emitidos por um nome amado e de grande peso.
A decisão descansa nas mãos da população, dos verdadeiros críticos de qualidade, que consomem diariamente os frutos da indústria artística. Ler ou não ler, ouvir ou não ouvir, assistir ou não assistir? A partir disso, dois caminhos se bifurcam. Duas estradas por onde se pode andar. Em uma, a arte produzida pelos cancelados é jogada fora sem dó e nem piedade. Em outra, a arte ainda é consumida, mas com um profundo senso de certo e errado, sem isenção de críticas feitas por seres pensantes. Mas, seja qual for a opção escolhida, não se pode nunca esquecer qual deveria ser o objetivo principal de todo cancelamento: o fim de atos de injustiça e preconceito.