Bolhas socialistas ou isolados pelo mundo?
- 15 de maio de 2018
- comments
- Thamires Mattos
- Posted in Análises
- 0
Coréia do Norte e Cuba tem histórias além do que a mídia ocidental apresenta, indo contra a maré capitalista, suas políticas de muros altos acabam por impedir a construção do “outro lado da moeda”
Evelyn Apolinário
Duas histórias.Um único objetivo: libertar o mundo. Apesar das várias interpretações, o “vilão” é o mesmo para ambas as narrativas. Falo de Cuba e Coréia do Norte. O “vilão”: Estados Unidos. Quem conta as histórias para o resto do mundo é a imprensa.O problema é que não dá para ter a “visão de Deus”, uma visão imparcial. Isso porque todos estão inseridos no sistema capitalista, logo, a mídia ocidental reflete em boa parte o discurso antissocialista. E essas ideias estão tão impregnadas na mente da população que, quando se fala em Coreia do Norte, logo se lembra da competição infantil entre Kim Jong-Un e Trump pra ver quem tem o maior botão. Também de forma pejorativa, é recorrente a repulsa no Brasil pelas políticas de esquerda, uma vez que sempre se ergue uma voz questionando: “você quer que isso aqui vire Cuba?”.
Bem, considerando que pouco se sabe realmente sobre os dois países socialistas, dada a política reservada e autoritária de governo, bem como distorções e imparcialidade dos meios ocidentais, o objetivo desse artigo é analisar o viés apurado pela equipe do programa “Não Conta Lá em Casa”, do Multishow. São quatro amigos que resolvem viajar para lugares hostis e polêmicos. Eles levam consigo aquela ideia de mudar o mundo, tentando viver a realidade dos países visitados, buscando isentar-se de pré-conceitos. Sobre o objetivo da série, André Fran, jornalista e apresentador do “Não Conta Lá em Casa”, escreveu em obra homônima que “enquanto houver desinteresse ou interesses escusos, desconhecimento ou manipulação na informação, uma causa justa ou uma injustiça global, estaremos dispostos e interessados em entender, mostrar, denunciar e (por que não?) ajudar”. Visto que o programa tem episódios sobre a Coreia do Norte e Cuba, algumas reflexões apresentadas são válidas para discussão sobre as relações de poder observadas nos referidos países.
Sem mais delongas, primeiro deve-se levar em conta que as gravações na Coreia ocorreram quando o Great Leader Kim Jong-Il ainda era vivo. De lá pra cá, algumas coisas mudaram, visto que o governo de Kim Jong-Un se mostra mais aberto ao diálogo. Claro, mudanças significativas não acontecem da noite pro dia. Ainda assim, considere que ele é o primeiro líder norte-coreano a cruzar as fronteiras com a Coreia do Sul, na zona desmilitarizada. Isso não acontecia desde 1953, quando as Coreias assinaram um acordo de cessar-fogo. Começam, agora, as conversas sobre instaurar a paz. Nos resta ficar atento ao desenrolar da coisa. O fato é que a tentativa prévia de acordo entre as Coreias para retirar os armamentos nucleares da península chegou a um beco sem saída no ano de 2008. Em 2009, a equipe do “Não Conta Lá em Casa”começou a produzir o programa, tendo como segundo destino a Coreia do Norte. Alguns anos depois, na quarta temporada, foi a vez de Cuba ser visitada.
No começo do episódio 5 da primeira temporada, o Leondre Campos, advogado que integra a equipe, faz uma declaração polêmica. “As poucas informações que chegam até o ocidente sobre esse vizinho esquisito da popular Coreia do Sul vinham de fontes pouco confiáveis, como George W. Bush”. Lembrando do icônico discurso de Bush, em 2002, quando colocou a Coreia do Norte no “eixo do mal”. Essa afirmação é incisiva ao considerar que tudo (ou seja, quase nada) que chega ao ocidente é manipulado, favorecendo o lado americano da história.
Mas claro, a Coreia não é tão inocente quanto gostaríamos de crer. Apesar da tentativa do “Não Conta Lá em Casa” de registrar cada segundo da viagem, há algumas regrinhas no turismo norte-coreano. Não se pode entrar com equipamentos de fotografia profissionais de longo alcance, nem conversar com os cidadãos locais, muito menos vestir slogans ou alusões à terra do Tio Sam. E quem garante que todas as regras sejam cumpridas, são os dois guias que te acompanharão 24 horas por dia. Ah, e você não pode simplesmente sair andando por lá. Só pode ir até a cerca do seu hotel. É melhor seguir à risca a cartilha entregue aos turistas antes de adentrar no país, senão você pode acabar condenado a fazer trabalho forçado por 12 anos da sua vida, como aconteceu a duas americanas que tentaram filmar clandestinamente os domínios do GreatLeader (caso de 2009, mencionado no episódio).
Esqueça internet: na Coreia do Norte, assim como em Cuba, o que se tem é intranet. Ou seja, acesso restrito, monitorado pelo governo. Também é uma boa oportunidade para deixar seu celular de canto, já que os turistas não podem levar seus smartphones consigo. E só há um canal de TV disponível durante a semana: o Pyongyang Channel. Aos finais de semana, abrem mais dois canais para o povo. Os turistas têm alguns privilégios, pode ser que você consiga alguns canais de TV a cabo convencional no seu quarto de hotel, mas não espere que seus guias conheçam o repertório.
Com todas essas limitações, os norte-coreanos acabam acreditando no que lhes é passado. O “Não Conta Lá em Casa” mostrou várias situações onde o povo dá crédito ao líder ditador por “invenções” como micro-ondas, pneus, holograma etc. E como nem nas bibliotecas se encontra uma segunda versão das coisas, não há como questionar. Um dos pontos turísticos de Pyongyang é o Arco do Triunfo (?!), que segundo o guia, é 11 metros mais alto do que o encontrado na França. O monumento seria um memorial da vitória dos norte-coreanos sobre os japoneses em 1945, o que teria culminado no fim da Segunda Guerra Mundial (!). Essas e outras histórias mirabolantes são usadas para engrandecer o país, provocando nacionalismo exacerbado na população. Eles realmente acreditam em tudo isso, porque não conhecem outro jeito de as coisas serem.
E a educação tem papel fundamental na manutenção do poder. André Fran escreveu no livro “Não Conta lá em Casa” que, em conversa única sobre política com a guia, ela se assustou por saber que no Brasil existe ensino privado. Isso porque lá na Coreia do Norte todas as crianças estudam em escolas do governo, onde aprendem disciplina e obediência, além de desenvolverem habilidades musicais e artísticas de grande complexidade. E, aos 14 anos, todos os pré-adolescentes ingressam na Liga Socialista Juvenil Kim Il-Sung.
Por fim, o destino foi os Jogos de Arirang, reconhecido pelo Guiness Book como maior espetáculo de massa coreografada do mundo. A multidão é treinada para executar com perfeição mosaicos e coreografias dificílimas. A equipe do programa observa que espetáculos dessa magnitude são característicos de regimes autoritários e regiões militaristas, visto que a importância do coletivo é colocada acima do individual. É uma autopropaganda de glorificação do sistema.
Apesar de toda a pompa dos passeios, das refeições fartas, qualidade da educação e infraestrutura da cidade, o “Não Conta Lá em Casa” chegou a triste conclusão de que na Coreia, só dá pra ver o que eles querem que seja visto. Os turistas são limitados a uma série de restrições, a um roteiro definido e inflexível, e a vigilância constante. Mas o povo norte-coreano também está numa bolha, sem saber o que há do lado de fora.
Assim como parece que Pyongyang foi projetada para mostrar uma Coreia do Norte bem-sucedida, Havana, em Cuba, tem papel similar. Felizmente, sabemos mais sobre o país caribenho. Considerada o meio-termo, se comparada a Coreia, Cuba tem lá seu charme. Os carros antigos que transitam pelo país, a cultura riquíssima, arquitetura encantadora…Parece um lugar que parou no tempo. Bem, é quase isso mesmo.
Cuba pode até não se fechar tanto quanto a Coreia, mas sofre um bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos que é de “quebrar as pernas”. É uma resposta a Revolução Cubana que derrubou o presidente pró-americano Fulgencio Batista, ascendendo a Fidel Castro e estatizando as empresas estadunidenses. Por isso, todos os modelos de carros no país datam da década de 20 a 50, mais ou menos, devido às diversas restrições na ilha, e para com a ilha.
Com isso, o turismo e comércio cubano perde muito dinheiro. Uma das soluções para incrementar a renda é cobrar a mais dos turistas pelos serviços prestados. Por exemplo: para comprar sorvete em Cuba, há fila para estrangeiros e para locais. O preço cobrado dos gringos é cerca de 25% mais caro que o peso cubano. Apesar de ser uma medida aparentemente justa, a consequência é que as diferenças sociais são acentuadas, visto que quem trabalha com comércio turístico ganha, consequentemente, 25% mais do que o cubano comum.
O país que outrora recebia mafiosos americanos famosos, como Al Capone, sendo quase uma Las Vegas no Caribe, agora se vê seguindo o modelo marxista-lenilista, tendo partido único, sem eleições diretas para cargos executivos. Fidel, o herói da revolução, foi amplamente acusado por seu autoritarismo, centralização de poder e desrespeito a liberdade de imprensa e direitos humanos. A equipe do “Não Conta Lá em Casa” salienta que o regime “foi instaurado na marra, sem o mínimo respeito a adversários políticos, enviados ao paredão sem julgamentos mais formais.”
Ainda assim, Cuba tem taxa de alfabetização de 99,8%, taxa de mortalidade infantil inferior ao de pouquíssimos países desenvolvidos, expectativa de vida entre uma das melhores do mundo e sistema de saúde referência, como apontou o programa da Multishow. E ainda provocam mais. “Quanto o sistema cubano realmente deu certo ou errado? A questão pode ser levantada em outros países como Estados Unidos, que sempre gozou de grande riqueza, mas enfrenta problemas no sistema de saúde, crise da dívida pública, drogas, criminalidade e estilo de vida financiado a custo de muitas guerras”. Pensando assim, até parece 6 por meia dúzia, né? Parece tudo farinha do mesmo saco!
Voltando a economia. O governo permite algumas iniciativas privadas, como as casas particulares, onde os cubanos podem alugar até dois cômodos de suas casas para turistas (ganhando naquela quantia 25% maior), e os “paladares”, que são restaurantes mais caros, porém com atendimento melhor e mais eficiente que o prestado por funcionários públicos nos restaurantes comuns. Mas não se deixe enganar. Apesar de o salário médio cubano parecer baixo, o “Não Conta Lá em Casa” alerta que “não dá pra converter também pro dólar pensando o que você faria com esse salário de 25 dólares em nova Iorque. Com um único dólar, o cubano consegue pagar o mês de aluguel ou 3 meses de comida para uma família de 4 pessoas, ou até assistir 90 jogos de beisebol, por exemplo”.
E por falar em beisebol, Cuba investe muito em esportes. Por isso as seleções cubanas figuram entre as melhores nas competições mundiais. E é em situações como estas que os atletas tentam fugir do país. São vários os meios usados para tentar alcançar a costa da Flórida. Barcos improvisados e pranchas de windsurf. Nem precisa dizer que a orla é superprotegida, e passagens aéreas são incogitáveis por conta do alto preço. Ou seja, é quase impossível que um cubano fuja.
A solução, então, é burlar o sistema para viver em Cuba. Por lá, as pessoas compram “pela esquerda”, ou seja, às escondidas. Jorge, o motorista que levou os quatro apresentadores do “Não Conta Lá em Casa” para Guantánamo, compra gasolina em galões, fora do valor tabelado. Por lá, é comum essa prática com comida, combustível e outros bens de subsistência.
Guantánamo, que inspirou a música “Guantanamera”, homenageando as mulheres da região, é também conhecida por abrigar uma base naval americana. Desde 1903 a base está em atividade, mesmo com as tentativas falhas de Fidel de deslocar o prédio. Na realidade, lá estão presos das guerras do Iraque e Afeganistão. Por lá, as pessoas são torturadas e não tem direito a julgamento justo. Nenhum órgão internacional pode fiscalizar a base, mesmo que esta tenha sido denunciada pela Cruz Vermelha e pelo próprio FBI. Parece que não é só o governo cubano que infringe os direitos humanos, né?!
No fim das contas, países como Cuba e Coreia do Norte ainda são resistência ao capitalismo dos Estados Unidos. Não que o socialismo esteja cem por cento correto no que prega e vive, mas precisamos considerar que não temos o panorama real de tudo. Ao mesmo tempo que não sabemos o que acontece do lado de dentro, o povo de lá não sabe o que há do lado de fora. E provavelmente nunca saberão. Se pararmos para pensar como a equipe do “Não Conta Lá em Casa” pensou, é um privilégio para os turistas poderem entrar e sair desses países, apesar das limitações. E foi esse o objetivo da viagem a Cuba. “Ter visto ao vivo e a cores, sem interlocutores ou relatos comprometidos e comprometedores, a verdadeira face de um dos destinos mais polêmicos do planeta”. Não sei se é possível ver as coisas sem as lentes do pré-julgamento e da nossa cultura. Mas o questionar e despir-se do que se sabe, para ver com os próprios olhos, é uma tentativa louvável.