Atacantes no campo e na história: A evolução do futebol feminino
- 30 de agosto de 2023
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- Theillyson Lima
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A história das mulheres que jogam o “esporte dos homens”.
A história das mulheres que jogam o “esporte dos homens”.Lana Bianchessi
O futebol é um esporte atribuído a cultura brasileira, mesmo que não tenha surgido aqui. Costumamos até dizer que o Brasil é o país do futebol pelo número de estrelas que temos na camiseta. No entanto, até pouco tempo atrás, parecia que o “país do futebol” era apenas dos homens. Por mais estranho que possa parecer, as mulheres só conquistaram o direito de jogar futebol em solo brasileiro há cerca de 44 anos, em 1979.
Nem sempre no campo
O primeiro jogo de futebol feminino que se tem documentado é da Inglaterra contra a Escócia, em Londres, ano de 1885. No Brasil, houve relatos de um jogo durante um evento beneficente em 1913, mas o time não era exclusivamente de mulheres. Um registro de jogo oficial, no entanto, ocorreu em 1921, dos times Cantareira contra Tremembeenses, em São Paulo.
Alguns jogos ocorriam desse modo, em meio a eventos beneficentes, circos e comemorações. Eles não eram voltados às mulheres em específico, mas existia uma abertura para suas participações. Porém, enquanto o tempo passava, o esporte começou a ser visto como algo violento para as mulheres e ideal somente para os homens.
Futebol ilegal
Quando pensamos que as mulheres ainda têm muitos atrasos na sociedade atual em comparação com os homens, temos que levar em conta também o esporte. Naquela época, era difícil para muitos conciliarem a visão de que a mulher deveria estar exclusivamente em casa e não ter interesses próprios, como a prática esportiva.
No início do século passado, mulheres conseguiram jogar futebol livremente por pouco tempo: de 1920 até 1941. Logo depois de uma partida feminina no Pacaembu,, foi estabelecido o Decreto-Lei 3.199, art 54. Esse decreto proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem “adequados a sua natureza”, com o futebol incluso.
Isso não deixou com que as meninas parassem de jogar, pois vários times foram formados e jogos assistidos nesse período. Um deles foi o Araguari Atlético Clube, considerado o primeiro clube do Brasil a formar um time feminino. Em meados de 1958, o clube selecionou 22 meninas para um jogo beneficente. Mesmo com pouca visibilidade e falta de incentivo, o futebol jogado pelas mulheres continuou crescendo.
Só em 1979 a lei que proibia o futebol para as mulheres foi extinta. Com isso, times como Esporte Clube Radar e Juventus puderam formar a primeira seleção brasileira feminina de futebol. Essa seleção foi convidada a participar do torneio experimental organizado pela Fifa, “Women’s Invitational Tournament”, em 1988, na China. Logo depois, a primeira edição da Copa do Mundo Feminina surgiu, em 1991, levando as mulheres a ascenderem nesse amado esporte.
Sem camiseta própria
Hoje qualquer time de escola faz sua própria camiseta, com os nomes dos alunos, o número escolhido e o design chamativo com combinações de turmas. Portanto, parece assustador, mas a Seleção Feminina de Futebol só passou a ter uniformes próprios na Copa de 2019. Antes, as partidas eram jogadas com shorts amarrados na cintura e camisetas largas.
Só na Copa de 2015 elas deixaram de usar uniformes masculinos, mas o brasão da Confederação Brasileira de Futebol ainda acompanhava 5 estrelas, a quantidade de títulos do futebol masculino. O uniforme exclusivo, projetado e pensado para o corpo feminino e com identidade e design específicos só veio na Copa de 2019.
A imprensa que não dava palco
Como se pode imaginar, a imprensa brasileira não divulgou muita coisa sobre o futebol feminino. No começo dos jogos, quando ainda não tinha sido proibido, a mídia até colaborou para opiniões contrárias à prática do esporte. Manchetes como “Pé de mulher não foi feito para se meter em chuteiras” e “Um disparate esportivo que não deve prosseguir” expuseram falas de desincentivo que influenciam os leitores. Ao mesmo tempo, algumas partidas que aconteciam recebiam migalhas de atenção.
Pouco depois da revogação da lei que proibia o futebol feminino, nada se foi anunciado pela imprensa, o que deixava os brasileiros confusos sobre a situação atual do esporte. Com o time feminino participando de campeonatos, isso mudou um pouco e as meninas passaram a assumir um papel mais expositivo nas capas, mas ainda enfrentando desafios como as comparações com os homens e comentários sem conexão com o jogo, envolvendo suas vidas pessoais ou aparência física.
Os meios de comunicação exibiam um teor de sensualidade em suas reportagens envolvendo as jogadoras. Comentavam sobre como elas se comportavam, como se vestiam fora do campo e como atraiam olhares dos homens por conta de seus shorts na hora do jogo. Uma revista chegou a publicar uma foto da, na época, volante do clube Pinheiros, Vandira Martins de Oliveira, de calcinha e a camiseta do time, tirada minutos antes do jogo começar.
Em uma edição da revista Placar, na década de 90, conta na capa “Futebol feminino: As garotas batem um bolão (e até trocam as camisas depois do jogo)”, com uma foto de modelos, e não das jogadoras, de costas usando shorts curtos. Ficava claro que a preocupação do veículo esportivo era com a fetichização do corpo feminino, não com o esporte.
Além disso, ainda existiam as críticas usando a comparação com os homens como ferramenta, discutindo se as mulheres teriam as mesmas habilidades que os homens ou falando se “jogadora x se parece com jogador y por causa das bicudas feitas”.
O que mudou?
A primeira Copa do Mundo Feminina transmitida pela TV aberta no Brasil foi a de 2019, o que resultou em muita audiência para as emissoras envolvidas. Segundo dados do Kantar Ibope Media, líder no mercado de pesquisa de mídia na América Latina, o jogo entre Brasil e França, pelas oitavas de final, teve mais de 30 milhões de espectadores. A final da Copa, entre Estados Unidos e Holanda, teve a maior audiência registrada em território brasileiro (e nem participamos do jogo!), com mais de 19 milhões de telespectadores.
A Copa do Mundo Feminina de 2023 registrou um público superior ao de toda a edição de 2019 somente na fase de grupos, com 1,222 milhão de torcedores nos estádios em 48 jogos disputados. Ela terminou com um alcance total de 63,2 milhões de pessoas, somando as transmissões da TV Globo e do SporTV. Os dados não contam outros números impressionantes, como as transmissões feitas pelo streaming na CazéTV, Ronaldo TV e FIFA+. É certo dizer que o Brasil está bem interessado e investido no futebol feminino.
Mesmo com toda essa evolução, manchetes sensacionalistas ainda foram vistas esse ano ao redor do mundo. Um exemplo foi “Ary Borges, da maternidade precoce à estreia perfeita”, no jornal português Desporto. O comentário sobre a vida pessoal da jogadora brasileira não é relativo ao futebol e cria espaço para comentários preconceituosos.
Outro exemplo é o da jogadora Aitana Bonmatí, que postou uma foto de biquini em seu Instagram pessoal. Logo depois, surgiram matérias com tom sexual. Infelizmente, ainda hoje, o futebol feminino é hiperssexualizado. Falta muito para mudar o pensamento dos jornais e portais que só querem visualizações.
Continue a jogar
Mesmo com todos os desafios e obstáculos, as mulheres seguem jogando e conquistando seus lugares nesse pódio repleto de homens. Com a inclusão das mulheres no esporte, especialmente no futebol, podemos alcançar salários mais justos, qualidade de vida, infraestrutura e uniformes apropriados, quebra de estereótipos de gênero e sexualização das jogadoras, profissionais adequados e incentivo para as crianças.
Com isso, podemos sonhar um dia sobre jogos com mais influência e visibilidade e sem mais diferenças e comparações com o futebol masculino, para que todos possam aprender a curtir o melhor dos dois mundos e aproveitar em dobro. Afinal, as mulheres só vieram para somar ao lazer futebolístico.